21 / Voando por cima.


Para entender a magnitude da Amazônia é preciso sobrevoá-la. É impossível ter a dimensão de seu espaço sem sair do chão. E mesmo voando não é tão simples assim. Por isso, durante duas semanas, sobrevoamos a grande floresta seguindo de Manaus, passando por Alta Floresta, Santarém, Macapá, Laranjal do Jarí, retornando a Santarém e a Manaus.

O Grand Caravan que alugamos era muito maior e mais bonito do que imaginava. Foi amor à primeira vista. É o único monomotor autorizado a transportar um presidente dos Estados Unidos, segundo me disse Cleiton, dono da empresa de Táxi Aéreo e dono do PT-PTB.

A outra opção que tinha era alugar dois Cessnas 210, mas fui desencorajado por meu pai que se referiu a esses aviões como "jacas voadoras". Ele, que pilota desde os 14 anos e tem centenas de horas de vôo por esses sertões do Brasil e até do Paraguai, ficou assustado quando eu disse que faríamos vôos de até quatro horas por cima de florestas intocadas.

Lá no aeroclube de Manaus a coisa foi ficando um pouco mais animadora: “Visibilidade de 10 km, probabilidade de chuvas e trovoadas de 40 %”, disse o controlador de vôo pelo rádio antes de decolarmos. Saímos de Manaus às 9h30 com destino a Alta Floresta no norte do Mato Grosso.

O tempo estava bom. Algumas nuvens impediam uma total visão horizontal, mas olhando para baixo se via tudo perfeitamente. E como é grande a floresta. Depois de vinte minutos, após termos cruzado o rio Jurema, um dos principais afluentes do rio Madeira, iniciou-se uma formação interessante que, segundo nosso piloto, era o começo da Serra do Cachimbo. A floresta tropical ali cede espaço para áreas descampadas. Do alto avista-se facilmente o solo arenoso e muitas rochas até então ocultados pelo tapete de árvores.

Próximos ao município de Apiacás, já no Mato Grosso, foi possível ver as primeiras grandes fazendas de gado. A partir desse ponto até Alta Floresta, que era o nosso destino, já não havia mais continuidade na floresta. O que se via eram grandes fragmentos verdes em meio às pastagens. É bem ali que fica o “arco do desmatamento”.

Nossa aterrisagem no pequeno aeroporto de Alta Floresta foi bem tranqüila. Um funcionário da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), tipicamente querendo demonstrar sua imbecil autoridade, nos causou dois problemas: primeiro multou nosso piloto por ter removido o último banco do avião para melhor transportar todos nossos equipamentos. Depois nos impediu de levantar vôo num outro pequeno avião (Cessna 206) sem a porta traseira para sobrevoar e filmar a região. Perdemos a tarde de trabalho e só no outro dia levamos o 206 para uma outra pista próxima e, sem a tal da porta, voamos do mesmo jeito.

Conhecemos dona Vitória em seu confortável hotel Floresta Amazônica. Seu pai foi o responsável pela colonização de toda aquela região. Recebeu uma enorme quantidade de terras do Governo Militar para distribuir aos novos colonos e investidores no final da década de 70.

Hoje, além do hotel, ela preside a Fundação Cristalino, que é responsável por ações conservacionistas na região. Entre outras frentes, ela luta para criação e ampliação do Parque Estadual do Cristalino, com área de aproximadamente 135 mil hectares. O parque está exatamente na divisa entre o Mato Grosso e o Pará, e reúne sete diferentes ecossistemas. Não bastasse isso, é considerado a melhor área para observação de pássaros de toda a Amazônia brasileira.

Logo cedo, fizemos o sobrevôo planejado para a tarde anterior. Em menos de uma hora voando Sul, em direção ao município de Sinop, foi possível avistar as primeiras plantações de soja. É bem fácil ver a diferença lá de cima: as áreas são nitidamente mais limpas do que aquelas usadas para o gado. Em duas fazendas avistadas a colheita estava sendo realizada bem na hora em que as sobrevoávamos.

Depois de três horas de vôo, reencontramos nossa equipe em Alta Floresta. Combinamos nossa próxima decolagem rumo à Fazenda Bacaeri, onde passaríamos alguns dias. No caminho, o plano era filmar nosso PTB do pequeno e mais lento 206. Como os dois pilotos eram muito experientes, conseguimos excelentes tomadas. Em alguns momentos as aeronaves se separavam por apenas alguns metros, numa altitude de 2000 pés. Para mim, que estava no 206 sem uma das portas, o barulho era enorme e a adrenalina ia às alturas. Depois da aventura, aterrisamos na fazenda e fomos recebidos com um belo churrasco.

Contei a história de seu Antônio no relato “Alta Floresta e o Arco do desmatamento”. Me lembro que ao final da entrevista, perguntamos a ele se havia algo a ser dito: entusiasmadamente ele criticou as pessoas que se dizem “experts” em Amazônia, sem nunca ter estado ali uma única vez. Ele aproveitou para falar também do quanto é burra uma legislação que apenas restringe, sem criar qualquer oportunidade às pessoas que vivem no local. Depois do almoço, nosso destino era Macapá com uma escala para abastecer em Santarém.

O Sul do Pará nas proximidades do rio Tapajós está ainda bem conservado, principalmente pela existência de inúmeras terras indígenas naquela região. De cima foi possível avistar enormes crateras em meio à floresta. São resquícios de garimpos hoje totalmente abandonados.

Por alguns momentos sobrevoamos a BR-163. Esse é o trecho que ainda não está asfaltado e por isso, em sua maior parte, ainda é uma estrada de terra que corta a floresta. No entanto, a quantidade de ramificações é bem grande, em geral estradas ilegais abertas para extração de madeira.

Desde o começo dessa expedição aérea sabíamos que em algum momento pegaríamos chuva. A primeira que enfrentamos foi bem na altura do município de Novo Progresso. Com esse nome fica fácil imaginar a situação: as fazendas são enormes e a floresta deixa de ser soberana. Só nos últimos cinco anos a população do município dobrou, chegando a 40 mil habitantes, sendo que as principais atividades comerciais são relacionadas à madeira e à pecuária.

Contornamos nuvens carregadas até a proximidade de Santarém, onde há bastante soja plantada, mas nada comparado a áreas agrícolas mais importantes como aquelas no norte do Mato Grosso.

Rápida abastecida em Santarém e ao final do dia decolamos com destino a Macapá. À nossa esquerda, olhando para Oeste, um deslumbrante pôr-do-sol sobre a gigantesca área alagada que marca o encontro dos rios Tapajós e Amazonas. Ilhas compridas e canais dourados faziam confundir o percurso do grande rio.

Nossa volta a Manaus foi um vôo noturno e pouco pude observar. Dias depois terminávamos os trabalhos de filmagens que duraram quase cinco meses. Logo após, peguei um outro avião, dessa vez convencional, para São Paulo e depois para Nova Iorque onde hoje me encontro estudando. Nesse vôo, sem conseguir dormir e pensando em tudo que havia vivido no último ano, escrevi em meu diário (e aqui encerro essa série de 21 relatos):

Há pouco mais de um ano cheguei em Manaus. Estava confuso, ainda incerto se havia feito a escolha certa. Afinal, a decisão de me mudar para cá havia sido somente minha.

Foi uma adaptação difícil, complicada. O que me ‘salvou’ foi o grande interessante nos trabalhos que realizei. Primeiro no Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ) e depois ajudando a produzir o filme “Return to the Amazon”, com Jean Michel Cousteau. Experiências diferentes e muito ricas. No primeiro, tive a oportunidade de conhecer uma realidade bem a fundo e também me envolver diretamente com a iniciativa pública, tanto estadual como federal. Aprender os métodos e buscar alternativas para a lenta e muitas vezes ineficiente burocracia governamental no Brasil é algo que não quero mais deixar de fazer. No segundo, viajei. Viajei muito: de barco, de avião, caminhonete, lancha, voadeira, canoa de madeira, moto e até de helicóptero. Fui a lugares e regiões tão diversas que é no mínimo simplista defini-las como Amazônia.

Parto daqui sabendo que volto. Saio um pouco mais confuso do que quando cheguei. A diferença é que na chegada a confusão era em relação a eu próprio. Agora é sobre os métodos e caminhos para equacionar e solucionar os problemas e desafios que essa fantásticas região nos apresenta. E também como aproveitar suas incontáveis oportunidades.

Ao mesmo tempo que tudo isso aqui deixou de ser um enorme espaço em branco (ou verde) no meu mapa do Brasil, também me dei conta que sei ainda menos de tudo o que vi e experimentei. É como saber menos, mas num nível mais elevado. Estranho, mas agradável.

Já tenho saudade de navegar nas imensidões desses rios.

No entanto, sei que parto para também evoluir. Sem essa experiência tatuada em minha pele, sei que não teria sido aceito num respeitado centro de educação que é a Universidade de Columbia. Vou para Nova Iorque para aprender mais da Amazônia.

O futuro daqui dependerá de atitudes governamentais. Isso não quer dizer “transferir a responsabilidade”, como muitos sempre esperam do governo no Brasil: “ah é culpa do governo”. Não. É papel de cada cidadão, morador ou não da região, mas por via do governo, por via de políticas públicas que considerem as complexidades e aproveitem as oportunidades que o contexto internacional nos oferece nesse começo de século.

A questão fundiária e de zoneamentos é urgente. A legislação que temos é boa, mas precisa ser aplicada, implementada e “en-forçada”.

Por último, se os benefícios são globais, que nós brasileiros tenhamos a visão necessária para saber tirar proveito de deter mais de 60% da Amazônia e da maior diversidade biológica do planeta.