02 / As hidrelétricas do rio Madeira.


Numa reportagem da revista The Economist de 03 de junho de 2006, Jaci Paraná foi descrita como um “dirt-track settlement”. Algo como acampamento de beira de estrada. Se existe lá uma aglomeração humana é por alguma razão econômica. Atualmente essa razão é a extração de madeira. Há também em volta muitas fazendas e pasto para gado, mas os fazendeiros na maioria das vezes moram em Porto Velho. São na maioria políticos da capital.

Se a sociedade brasileira se aterrorizou com o seu próprio Poder Legislativo Federal no ano passado depois da crise do mensalão, nem consigo dizer como ficaria se a maracutaia dos nossos federais fosse como a dos deputados estaduais da última legislatura da Rondônia.

Jaci Paraná está há aproximadamente 80 km de Porto Velho, no Oeste da Rondônia. A primeira vez que passei por lá foi num mês de agosto de 2006, vindo de Rio Branco no Acre. Era época da seca e no final da temporada de queimadas, quando os fazendeiros metem fogo na terra para terminar de “limpa-la” e facilitar o plantio de pasto. No alvorecer e à tardinha é difícil abrir os olhos, com lente de contato é um desastre. De noite é fácil ver as muitas labaredas de fogo na floresta distante.

A quantidade de madeireiras nesse trecho do estado e em volta de Jaci é chocante. Da estrada mesmo se conta em dezenas, sem falar dos caminhões carregando toras gigantescas.

No entanto, toda essa situação vai ser profundamente alterada quando iniciarem a construção das duas usinas hidrelétricas no rio Madeira: a de Santo Antônio e de Jirau.

Há poucos meses pouca gente sequer conhecia esses projetos. Agora com o tal do PAC do governo Lula virou manchete. A “crise” do licenciamento das obras mexeu com o brio de alguns ministros, criou o cômico episódio do bagre, e resultou na divisão do IBAMA com a criação do Instituto Chico Mendes.

O rio Madeira é o maior afluente do Amazonas e é responsável por 15% da água que esse descarrega no Atlântico. Sua bacia ocupa aproximadamente 20% da bacia Amazônica sendo maior que todos os países amazônicos com exceção do Brasil . O rio Madeira drena não apenas o Brasil, mas também a Bolívia e o Peru, recebendo águas de outros rios como o Beni, o Madre de Dios, o Mamoré e o Itenez-Guaporé.

A empresa FURNAS Centrais Elétricas S/A responsável pelos estudos da área, descreve, em seu website, o projeto:

- Como de aproveitamento múltiplo que amplia a navegação em todo o rio Madeira, de embarcações de maior calado entre Porto Velho e Abunã, possibilitando o incremento da agroindústria, do ecoturismo e integrando as redes fluviais entre Brasil, Bolívia e Peru.

Independente se a navegação vai mesmo ser possibilitada nesse trecho do afluente mais turbulento do rio Amazonas, o importante é que as duas usinas juntas vão gerar aproximadamente 8% da energia obtida com a atual capacidade instalada no Brasil. Um número nada modesto.

Como é? E como será?

Ainda segundo a FURNAS: hoje, o parque gerador do Estado de Rondônia conta com uma oferta de aproximadamente 800 MW. Com a construção das usinas de Santo Antônio e Jirau serão mais de 6.450 MW colocados no mercado e, com a construção de linhas de transmissão para o Acre, Amazonas e Norte do Mato Grosso, será possível a conexão com o Sistema Interligado Brasileiro.

Na vila Jaci Paraná, que já tem aspiração de cidade grande, espera-se aproximadamente 10 mil trabalhadores somente na construção das duas barragens. De lá até a cachoeira do Jirau, daí o nome de uma das usinas, são 38 km pela BR-364 e mais 9 km numa estradinha de terra. A FURNAS mantém um grande acampamento para abrigar os pesquisadores e responsáveis pelo estudo desde 2001.

Tive acesso pela principal parte das corredeiras pelo próprio acampamento que não estava sendo utilizado naquele momento e era guardado por três moradores do local. Um deles, o Tião, acabou virando meu guia por uma manhã ensolarada. Percorremos pelas pedras toda a margem direita das corredeiras. Como as águas do rio Madeira ainda estavam baixas, a maioria das pedras estava exposta formando um terreno que lembra o “Vale da Lua” nos arredores de La Paz na Bolívia. O local é também um dos mais impressionantes indicadores da diferença entre a cheia e a seca dos rios da Amazônia. Todos aqueles milhares de metros quadrados de pedras e grandes buracos ficam completamente submersos na cheia.

Desafiando a gravidade vimos um gigantesco tronco de Samaúma, uma das maiores árvores da Amazônia, sentado por cima das pedras.

- Essa árvore encalhou por ali na última cheia

Tião que nasceu nos arredores da corredeira ainda se surpreende com a força das águas. É essa mesma força que, segundo técnicos envolvidos no projeto, garantirá a não necessidade de um grande reservatório de água. Esse erro ambiental já foi cometido em outras hidrelétricas na Amazônia. Uma delas é a hidrelétrica de Balbina, próxima a Manaus que quando construída inundou uma área de aproximadamente 2.4 milhões de hectares e hoje sequer provê 30% da energia necessária para a capital do Amazonas.

O jornal O Estado de São Paulo publicou um artigo em 28 de agosto de 2006 com o título “Risco de apagão assombra o País” onde afirmava: acabou a era das usinas com grandes reservatórios e mencionava o caso das usinas do rio Madeira.

Já na Cachoeira do Santo Antônio, localmente chamada de “Teotônio”, passei no mês de Novembro de 2006 quando as águas iniciavam sua subida. Num intervalo de três dias elas podem subir mais de dois metros, um fenômeno ímpar.

Os moradores da região e outros tantos vindos de Porto Velho fazem à festa pescando, ou literalmente pegando com a mão, os peixes que sobem essas corredeiras todos os anos para desovar. É outro momento surpreendente não só pela quantidade de peixes que pulam as pedras feito pipoca, como as pessoas usando todos os artifícios para pescar no local proibido. Uns usam anzol com isca, outros anzol sem isca a chamada “lambada” e há sempre os que não se contentam com pouco e utilizam tarrafas.

Havia até um posto da polícia ambiental atuando os infratores, mas ninguém se importava. Vi uma dupla que em duas tarrafadas tirou uns 15 kg de peixe, e em seguida foi “atuada” em seguida pelos policiais. Também não resisti. Armado com uma linhada e uma isca artificial coberta de anzóis peguei dois peixes-cachorro em poucos arremessos na corredeira.

A demanda por energia num país como o Brasil que almeja crescer precisa ser suprida.

Com as hidrelétricas no local dessas duas corredeiras teme-se evitar que milhões de toneladas de peixe continuem esses ciclos naturais de subida todos os anos. Além disso, e talvez até mais relevante para um debate sobre o assunto é o impedimento de bilhões de toneladas de sedimentos rio abaixo. O rio Madeira é o que mais carrega sedimentos entre todos os afluentes do rio Amazonas. Esses sedimentos com o passar dos anos podem assorear o reservatório comprometendo a capacidade de geração elétrica.

Procurar uma saída para esses gigantes problemas ambientais é o maior desafio para um projeto de geração de energia que seja ecologicamente correto e evite desastres futuros.