14 / Viagem ao Jauaperi.


Encontrar um lugar na Amazônia para mergulhar que tenha uma visibilidade decente é um desafio. Conversei com vários pesquisadores que trabalham com peixes e mamíferos aquáticos, consultei a literatura e mesmo assim esse lugar parecia não existir. Uma das esperanças eram os afluentes do rio Tapajós, no Pará, onde até encontramos visibilidade, mas pouquíssima vida animal. Outra tentativa foi no rio Javari, Amazonas fronteira com o Peru, onde nos deparamos com alguma vida, mas pouca visibilidade.

A primeira vez que ouvi falar das transparentes águas do rio Xixuaú foi numa conversa com Vera da Silva, uma das mais importantes pesquisadoras de mamíferos aquáticos da Amazônia. Com seu jeito calmo e quase transcendental, ela nos disse que o rio Xixuaú era um afluente do rio Jauaperi, que por sua vez é afluente do rio Negro. O melhor lugar para mergulhar se encontra ao sul do estado de Roraima.

A maior parte da nossa equipe havia partido de Manaus havia duas semanas. Iriamos nos encontrar na foz do rio Jauaperi. Éramos quatro, além do piloteiro, o Raimundo, e seu ajudante.

Encontrei Raimundo no porto de Manaus na tarde anterior a nossa viagem. Ele tinha uma voadeira grande, que permitia levar todos nossos equipamentos, que eram muitos. Com um motor de 85hp fiquei confiante que faríamos o percurso Manaus-Moura (vila próxima à foz do rio Jauaperi no rio Negro) em umas 13 horas.

Partimos cedo. Subindo o rio Negro, a partir de Manaus, à direita era possível ver uma mata alta e aos seus pés areias brancas. À esquerda a floresta é mais baixa e no lugar da areia havia uma grama verde de nova que só aparece nos tempos da seca.

A floresta da esquerda é mais baixa, pois ela está sobre ilhas, que formam o arquipélago de Anavilhanas. A maior parte do arquipélago constitui a Estação Ecológica de Anavilhanas, que foi criada em 1981 para proteger e preservar as mais de 400 ilhas do arquipélago, sua respectiva biodiversidade e beleza cênica. O Rio Negro é o principal curso fluvial que se ramifica em centenas de igarapés, paranás, canais e alguns enormes lagos que se formam entre as ilhas. Diferente da maioria das Unidades de Conservação (Áreas Naturais protegidas) brasileiras, a estação tem sua situação fundiária totalmente regularizada, ocupando uma área de aproximadamente 350 mil hectares entre as ilhas e um pedaço de terra firme.

Estação Ecológica (ESEC): é uma unidade de conservação federal que tem como objetivo a preservação da natureza e a realização de pesquisas científicas. É proibida a visitação pública, exceto com objetivo educacional e a pesquisa científica depende de autorização prévia do órgão responsável.


Foi justamente dentro do arquipélago, no canal principal e a caminho de Novo Airão, que nosso motor deu a primeira engasgada. Raimundo se espantou. Parecia até que era a primeira vez que via seu querido 85hp engasgar. Quando paramos para “olhar” o problema, percebi que Carlos, o ajudante de Raimundo, tinha só os dois dentes da frente e pés que pareciam de uma tartaruga, ou qualquer outro anfíbio. Foi o pretexto para que ele começasse a falar. Coisa que não parou de fazer por horas. Até com dois americanos da equipe ele conversou, apesar de não falar uma palavra sequer em inglês.

Passaram mais de três horas de teorias sobre as causas do problema no motor e tentativas frustradas de consertá-lo.

- Ao menos quando voltar para Manaus serei um mecânico melhor. – disse Carlos sem perceber o tamanho da encrenca em que nos metíamos.

Entre remadas, trancos, engasgos e alguns breves momentos de alguma potência, conseguimos chegar a Novo Airão, cidade localizada à margem direita do rio Negro e bem em frente do arquipélago. Lá encontramos um mecânico mal humorado que fez pouco caso do nosso problema. Enquanto Raimundo trabalhava na máquina, fui procurar algum outro motor que serviria de estepe caso os problemas continuassem. Depois de rodar a cidade toda de moto-taxi, encontrei um Yamaha de 40hp que seu dono só concordou em alugar caso viesse junto a bordo. Sem opção ganhamos peso extra e mais uma barriga para alimentar.

A parada em Novo Airão nos deu a breve esperança que nosso 85hp funcionaria redondo e que a partir dali e que em mais seis horas estaríamos no Jauaperi. Doce engano, o motor engasgou de novo tão logo partimos da pequena cidade. Finalmente convenci Raimundo e Carlos a trocarem o motor problemático pelo recém adquirido estepe. Esses motores de popa, principalmente o de 85hp, pesam muito e trocá-los com água acima dos joelhos, próximos a uma praia e escurecendo, foi uma tarefa que nos consumiu quase uma hora. E a última luz do dia.

A voadeira era larga e o motor curto para ela. Assim ele não ficava por inteiro dentro dágua. Além disso, ela formava um vácuo embaixo do casco faltando água suficiente para tracionar a hélice do motor. O resultado é que começamos a viajar numa velocidade inferior à das tradicionais “rabetinhas” que usam motor de apenas 5hp.

Todos perceberam que naquela velocidade lavaríamos a noite toda e um bom pedaço do dia seguinte para chegar ao nosso destino. No entanto, o clima já estava tão pesado que ninguém abriu a boca.

Já era por volta das dez da noite quando o motor parou. A ausência do barulho e de movimento fez com que todos acordassem. Raimundo começou a falar e repetir que naquela velocidade não dava para continuar. Ele dominava o dono do motor com sua fala acelerada. Tive um momento de absoluta inspiração e objetividade e pedi para que deixasse o rapaz falar. Um pouco nervoso ele falou que já havia feito esse percurso de rabetinha inúmeras vezes e que gastaríamos outras 15 horas a partir de onde estávamos. Apesar de um olhar quase ameaçador de Raimundo, decidi que continuaríamos viagem. A outra opção era voltar a Novo Airão onde dificilmente conseguiríamos uma outra voadeira e perderíamos pelo menos dois dias.

Tive uma gostosa sensação de liderança, de contornar um momento difícil e seguir rumo a um objetivo. Durou pouco, quando na manhã seguinte, já sem comida alguma no barco, tivemos que nos contentar com uma saudável mistura de rum com cerveja de café da manhã. Quando finalmente encontramos o Ariaú-Açu, nosso barco e casa durante as expedições, já se passava das três da tarde. Ao todo foram 34 horas de viagem.