01 / No Acre.




No Acre se encontra o último fuso horário do Brasil. Esse pequeno estado está na moda, foi até tema da bienal de arte de São Paulo de 2007. É onde nasceram Chico Mendes e Marina Silva, personalidades do mundo ambiental. Chico foi morto em 1989 em disputa com fazendeiros e depois transformado em mito. Até a Globo fez uma minissérie com o nome Amazônia – de Galvez a Chico Mendes. Já Marina Silva, aliada política de Chico Mendes, é a atual ministra do meio ambiente.

Até aí, e também o que vi no começo da minissérie da Globo, pouco sabia ou conhecia desse pequeno estado brasileiro que foi tomado e depois comprado da Bolívia no início do século passado. Faz também fronteira com o Peru. A negociação, após inúmeros combates bélicos, se resume na recompensa ao governo boliviano pela anexação de parte de seu território com a construção da Madeira-Mamoré. Ferrovia que se eternizou não por sua função de transporte de mercadorias e saída para os produtos da região, mas pela quantidade de mortos durante sua construção e total não aproveitamento de sua capacidade instalada, que ao fim da construção era praticamente nada, um “trem fantasma”.

Havia passado por aqui em 2001 na volta de uma viagem pelo altiplano boliviano e os Andes no Peru. Dessa vez a missão era levantar informações e planejar a logística para o documentário “Return to the Amazon” de Jean Michel Cousteau e Ocean Futures Society. O filme retrata as mudanças na Amazônia nos últimos 25 anos.

Era véspera das eleições para presidente e governador e a quantidade de bandeiras vermelhas nos arredores da capital Rio Branco já mostrava que o PT definitivamente continuaria no poder. Milhares delas espalhadas por quintais e terrenos, grandes e quase sempre enroladas em si próprias, ficam penduradas em postes finos de madeira de mais de seis metros de altura. Não há um lugar que se olhe e não as vejam ocupando o horizonte num clima de vitória anunciada.

Como era o segundo mandato de Jorge Viana, ele indicou seu próprio vice, 13inho, leia-se Binho, para concorrer às eleições governamentais. Ganhou facilmente.

Ouvindo um gargalhante horário-político-obrigatório no rádio do Gol 1000 alugado, segui rumo ao Leste pela BR-364 com o propósito de dormir na pequena vila de Jaciparaná, já na Rondônia. Essa estrada corta todo o Sul da Amazônia brasileira, saindo de Cuiabá, atravessando os estados de Mato Grosso, Rondônia e Acre, e terminando no ponto mais ocidental do país, a pequena cidade de Cruzeiro do Sul, fronteira com o Peru. A maior parte do percurso que percorri está asfaltada e em boas condições.

Parado por um simpático guarda rodoviário na Tucandeira (posto de controle, pesagem e carimbos), na divisa do Acre com Rondônia, fui impedido de prosseguir viagem já que os documentos que portava eram de outro carro que não o Gol 1000. Indignado e crente que era um erro do autoridade só me convenci do contrário quando comparamos os documentos que eu portava com o número do chassi do carro. Nenhuma letra ou numero coincidiu.

As três horas que esperei um funcionário da Localiza, “onde é fácil alugar um carro”, resolver minha constrangedora situação serviram para vivenciar, ainda que por pouco tempo, as delongas burocráticas por quais passam caminhoneiros e empresas de transporte Brasil afora. Já não bastassem às detestáveis condições da malha rodoviária. A impressão que dá é que todo o esquema é preparado de tal forma a dificultar ao máximo o transporte de produtos e pessoas, acarretando enormes custos econômicos, principalmente custos de oportunidade e impedindo uma maior integração entre estados e regiões brasileiras.

Como os caminhoneiros passam por essas situações diariamente era o meu caso o que chamava mais atenção. Alguns vieram me perguntar o que fazia parado ali já que dirigia um carro novinho em folha. Inevitavelmente conheci alguns figuras: como um senhor que, acompanhado de um dos filhos, partiu de Alagoas havia mais de uma semana, num caminhão da década de 70, para visitar uma filha sua que não via há anos e que agora morava em Rio Branco. Para cobrir os custos da viagem, encheram a carroceria de madeira com cavalos e mulas e os vinham vendendo nas fazendas ao longo do caminho. Eles também haviam sido parados na Tucandeira, mas em sentido contrário. Seu filho voltou para Leste para vender um burro ou dois que não portavam os corretos documentos de saúde animal.

Com forte sotaque do interior nordestino, esse senhor me dizia que a única solução para o Brasil era a Luiza Helena como presidente. Não bastava qualquer justificativa racional, e olha que tentei inúmeras, que ele não se convencia do contrário e veementemente afirmava que só ela seria a solução de todos os problemas brasileiros, de corrupção à taxa de juros.

Um outro rapaz, paranaense e mais ou menos da minha idade, estava embravecido com os funcionários do posto de controle que, segundo ele, demoravam propositadamente com seus carimbos e assinaturas.

- Minha mãe bem que me dizia pra estudar e virar médico ou dentista, não dei ouvido e virei mecânico e motorista.

Resolvido o problema da documentação continuei até Jaci-Paraná. No caminho, já no estado da Rondônia, é preciso cruzar o rio Madeira de balsa. Durante a travessia, um olhar atento para a direita percebe a presença da bandeira da Bolívia numa ponta de terra. É a Bolívia!

Quando voltamos para o Acre já para as filmagens do documentário, conhecemos e entrevistamos o cientista nascido nos Estados Unidos Irving Foster Brown que reside em Rio Branco e trabalha na Universidade Federal do Acre. Esse simpático e comunicativo cientista tem como foco geográfico de suas pesquisas a área apelidada de MAP (Madre de Dios no Peru; Acre no Brasil e Pando na Bolívia).

São três unidades políticas desses três países vizinhos. Segundo Brown não havia muito contato entre os três principalmente pela dificuldade de acesso, mas essa situação mudou desde a metade da década de 90 com o início das obras da rodovia interoceânica que liga essa região ao chamado corredor interamericano no Pacífico.

Uma das maiores contribuições de seu trabalho é a mensuração das queimadas na região que nos últimos anos alcançaram níveis jamais vistos em intensidade e abrangência. A de 2005, nem dois anos atrás, queimou uma área de aproximadamente 300 mil hectares de florestas tropicais. Um acontecimento que repercutirá no médio prazo já que a área que pegou fogo é agora ainda mais suscetível para outras queimadas. Vale lembrar que é a queimada de áreas florestais como essa a maior contribuição do Brasil para o aquecimento global. Engana-se quem pensa que a conta desse problema nós vamos dividir com o restante do mundo, nas palavras de Brown:

- Aqui é onde o vento faz a curva. Não somente no sentido figurado como no fim do mundo, mas o vento que leva o ar e a umidade que formam as chuvas lá no Sul, as queimadas diminuem essa umidade acarretando menos chuva nas áreas agrícolas do Sul e Sudeste do país.

As perdas econômicas desse fenômeno são de difícil mensuração, mas não tenho dúvida que são enormes.

No Acre durante os meses de verão, meses que chovem menos, a fumaça dói nos olhos e faz ver o sol a Oeste descer em degrade.

02 / As hidrelétricas do rio Madeira.


Numa reportagem da revista The Economist de 03 de junho de 2006, Jaci Paraná foi descrita como um “dirt-track settlement”. Algo como acampamento de beira de estrada. Se existe lá uma aglomeração humana é por alguma razão econômica. Atualmente essa razão é a extração de madeira. Há também em volta muitas fazendas e pasto para gado, mas os fazendeiros na maioria das vezes moram em Porto Velho. São na maioria políticos da capital.

Se a sociedade brasileira se aterrorizou com o seu próprio Poder Legislativo Federal no ano passado depois da crise do mensalão, nem consigo dizer como ficaria se a maracutaia dos nossos federais fosse como a dos deputados estaduais da última legislatura da Rondônia.

Jaci Paraná está há aproximadamente 80 km de Porto Velho, no Oeste da Rondônia. A primeira vez que passei por lá foi num mês de agosto de 2006, vindo de Rio Branco no Acre. Era época da seca e no final da temporada de queimadas, quando os fazendeiros metem fogo na terra para terminar de “limpa-la” e facilitar o plantio de pasto. No alvorecer e à tardinha é difícil abrir os olhos, com lente de contato é um desastre. De noite é fácil ver as muitas labaredas de fogo na floresta distante.

A quantidade de madeireiras nesse trecho do estado e em volta de Jaci é chocante. Da estrada mesmo se conta em dezenas, sem falar dos caminhões carregando toras gigantescas.

No entanto, toda essa situação vai ser profundamente alterada quando iniciarem a construção das duas usinas hidrelétricas no rio Madeira: a de Santo Antônio e de Jirau.

Há poucos meses pouca gente sequer conhecia esses projetos. Agora com o tal do PAC do governo Lula virou manchete. A “crise” do licenciamento das obras mexeu com o brio de alguns ministros, criou o cômico episódio do bagre, e resultou na divisão do IBAMA com a criação do Instituto Chico Mendes.

O rio Madeira é o maior afluente do Amazonas e é responsável por 15% da água que esse descarrega no Atlântico. Sua bacia ocupa aproximadamente 20% da bacia Amazônica sendo maior que todos os países amazônicos com exceção do Brasil . O rio Madeira drena não apenas o Brasil, mas também a Bolívia e o Peru, recebendo águas de outros rios como o Beni, o Madre de Dios, o Mamoré e o Itenez-Guaporé.

A empresa FURNAS Centrais Elétricas S/A responsável pelos estudos da área, descreve, em seu website, o projeto:

- Como de aproveitamento múltiplo que amplia a navegação em todo o rio Madeira, de embarcações de maior calado entre Porto Velho e Abunã, possibilitando o incremento da agroindústria, do ecoturismo e integrando as redes fluviais entre Brasil, Bolívia e Peru.

Independente se a navegação vai mesmo ser possibilitada nesse trecho do afluente mais turbulento do rio Amazonas, o importante é que as duas usinas juntas vão gerar aproximadamente 8% da energia obtida com a atual capacidade instalada no Brasil. Um número nada modesto.

Como é? E como será?

Ainda segundo a FURNAS: hoje, o parque gerador do Estado de Rondônia conta com uma oferta de aproximadamente 800 MW. Com a construção das usinas de Santo Antônio e Jirau serão mais de 6.450 MW colocados no mercado e, com a construção de linhas de transmissão para o Acre, Amazonas e Norte do Mato Grosso, será possível a conexão com o Sistema Interligado Brasileiro.

Na vila Jaci Paraná, que já tem aspiração de cidade grande, espera-se aproximadamente 10 mil trabalhadores somente na construção das duas barragens. De lá até a cachoeira do Jirau, daí o nome de uma das usinas, são 38 km pela BR-364 e mais 9 km numa estradinha de terra. A FURNAS mantém um grande acampamento para abrigar os pesquisadores e responsáveis pelo estudo desde 2001.

Tive acesso pela principal parte das corredeiras pelo próprio acampamento que não estava sendo utilizado naquele momento e era guardado por três moradores do local. Um deles, o Tião, acabou virando meu guia por uma manhã ensolarada. Percorremos pelas pedras toda a margem direita das corredeiras. Como as águas do rio Madeira ainda estavam baixas, a maioria das pedras estava exposta formando um terreno que lembra o “Vale da Lua” nos arredores de La Paz na Bolívia. O local é também um dos mais impressionantes indicadores da diferença entre a cheia e a seca dos rios da Amazônia. Todos aqueles milhares de metros quadrados de pedras e grandes buracos ficam completamente submersos na cheia.

Desafiando a gravidade vimos um gigantesco tronco de Samaúma, uma das maiores árvores da Amazônia, sentado por cima das pedras.

- Essa árvore encalhou por ali na última cheia

Tião que nasceu nos arredores da corredeira ainda se surpreende com a força das águas. É essa mesma força que, segundo técnicos envolvidos no projeto, garantirá a não necessidade de um grande reservatório de água. Esse erro ambiental já foi cometido em outras hidrelétricas na Amazônia. Uma delas é a hidrelétrica de Balbina, próxima a Manaus que quando construída inundou uma área de aproximadamente 2.4 milhões de hectares e hoje sequer provê 30% da energia necessária para a capital do Amazonas.

O jornal O Estado de São Paulo publicou um artigo em 28 de agosto de 2006 com o título “Risco de apagão assombra o País” onde afirmava: acabou a era das usinas com grandes reservatórios e mencionava o caso das usinas do rio Madeira.

Já na Cachoeira do Santo Antônio, localmente chamada de “Teotônio”, passei no mês de Novembro de 2006 quando as águas iniciavam sua subida. Num intervalo de três dias elas podem subir mais de dois metros, um fenômeno ímpar.

Os moradores da região e outros tantos vindos de Porto Velho fazem à festa pescando, ou literalmente pegando com a mão, os peixes que sobem essas corredeiras todos os anos para desovar. É outro momento surpreendente não só pela quantidade de peixes que pulam as pedras feito pipoca, como as pessoas usando todos os artifícios para pescar no local proibido. Uns usam anzol com isca, outros anzol sem isca a chamada “lambada” e há sempre os que não se contentam com pouco e utilizam tarrafas.

Havia até um posto da polícia ambiental atuando os infratores, mas ninguém se importava. Vi uma dupla que em duas tarrafadas tirou uns 15 kg de peixe, e em seguida foi “atuada” em seguida pelos policiais. Também não resisti. Armado com uma linhada e uma isca artificial coberta de anzóis peguei dois peixes-cachorro em poucos arremessos na corredeira.

A demanda por energia num país como o Brasil que almeja crescer precisa ser suprida.

Com as hidrelétricas no local dessas duas corredeiras teme-se evitar que milhões de toneladas de peixe continuem esses ciclos naturais de subida todos os anos. Além disso, e talvez até mais relevante para um debate sobre o assunto é o impedimento de bilhões de toneladas de sedimentos rio abaixo. O rio Madeira é o que mais carrega sedimentos entre todos os afluentes do rio Amazonas. Esses sedimentos com o passar dos anos podem assorear o reservatório comprometendo a capacidade de geração elétrica.

Procurar uma saída para esses gigantes problemas ambientais é o maior desafio para um projeto de geração de energia que seja ecologicamente correto e evite desastres futuros.

03 / O Garimpo não é mais como antigamente.


O ouro levou muita gente para a Amazônia. A ilusão de riqueza imediata fez com que muitos se aventurassem nos mais diferentes garimpos dessa imensa região. O rio Madeira foi palco de muitas dessas empreitadas que fizeram a fortuna de poucos e custou a vida de muitos outros. Toneladas desse precioso minério foram extraídas de seu leito principalmente durante a década de oitenta.

Há aproximadamente 20 km ao norte da vila de Jaci Paraná, na Rondônia, logo acima das corredeiras do Jirau, tem um pequeno assentamento chamado ‘2 irmãos’. De lá saem as voadeiras que levam os garimpeiros para as Dragas que restaram da febre do ouro que ocorreu na região há duas décadas. É provável que restem entre 80 e 100 dragas trabalhando acima da corredeira do Jirau até a fronteira com a Bolívia. São poucos os brasileiros que extraem ouro Bolívia a dentro. Também não se vê bolivianos garimpando em águas brasileiras.

Logo que cheguei ao barranco do assentamento conheci um tal Cabeção. Olhos bem azuis espremidos num rosto enorme, arredondado e queimado do sol. Totalmente bêbado ele disse para me juntar a um grupo de “meninas” para um passeio pelas dragas.

A prostituição é praticamente uma atividade complementar ao garimpo. Elas estavam em três e chegaram numa sexta-feira para trabalhar durante o fim de semana. O programa é feito nas próprias dragas ou em algum flutuante próximo. A que mais chamava atenção era a “Xuxa”, morena com cabelos até a cintura totalmente tingidos de loiro.
Enquanto passávamos pelas dragas, “Xuxa” ia distribuindo beijinhos aos homens exaltados que gritavam e acenavam num episódio bizarro.

Além de cabeção, as três meninas e eu, estava em nossa voadeira um sujeito apelidado de baixinho. No dia anterior ele havia encontrado algum ouro. Alegre de pinga e cerveja não conseguia se decidir com qual das três ele queria ficar, a cada minuto beijava e babava numa delas.

Num certo momento, cabeção levantou sua camiseta e mostrou orgulhoso o cabo de seu 38 enfiado entre as calças.

- Meu Deus! Que é isso? Perguntou uma delas.

- Tu tá no garimpo minha família. Ta achando o que? Respondeu cabeção.

Baixinho pra não ficar fora do diálogo perguntou:

- Mataram o Nascimento é?

- Sei não rapaz...

- Também, diz que ele tava roubando mais do que onça.

- Há! Então boiou por aí...

Em cada draga trabalham cinco pessoas 24 horas por dia em turnos separados. Enquanto em algumas só há homens em outras trabalham toda uma família. Uma draga é basicamente uma balsa de dois andares. Serve de casa, tem quarto e cozinha no andar de cima. A mobilidade permite procurar novos lugares ao longo do rio sempre que necessário.

No “térreo” da draga tudo o que se vê é para a extração do ouro. Tem um grosso tubo que suga a areia do fundo do rio e a joga numa grande peneira. É nessa areia que está o pozinho de ouro que uma vez misturado com o azougue, ou mercúrio, fica mais pesado e vai para o fundo da peneira. Depois se queima o azougue e, quando há sorte, conseguem formar algumas pepitas.

Perto do garimpo quase não há circulação de dinheiro, tudo é trocado por “gramas”, de diesel à alimentação. Quando é necessário comprar mantimentos para mais tempo eles cruzam a fronteira e fazem a compra na Bolívia. Lá também se troca por ouro.

O dono de umas dessas dragas me disse que por mês consegue tirar até 1,5 kg de ouro, sendo que naquele dia a grama valia 40 reais. Depois de dividir com os outros já não sobra muito. Resignado ele completou:

- Mas já não é mais como antigamente quando agente ganhava muito dinheiro. Muitos gastavam tudo em Porto Velho, mas outros compraram fazendas e imóveis e até hoje vivem muito bem.

Quando uma draga acha um bom local de ouro, o segredo dura pouco e muitas outras vêm tentar a sorte no mesmo lugar. Juntam-se umas as outras e formam o que chamam de “fofoca”. Nesse dia vi uma fofoca de mais de 20 dragas. Quando o ouro se esgota, elas se separam e vão tentar a sorte por si só.

04 / Atlantic – Pacific Highway.


É da pequena vila de Nanpari até a cidade de Urcos, ambas no Peru, que está sendo asfaltado o último trecho de estrada que liga o litoral do Atlântico ao do Pacífico. É um trecho de 710 km.

Não se trata de uma única rodovia como alguns chamam de inter-oceânica ou Rodovia do Pacífico, mas um conjunto de rodovias que se conectam e assim conectam os dois oceanos pela parte mais larga da América do Sul, sendo grande parte dentro do ecossistema amazônico. No Brasil estamos falando principalmente da BR-364.

Dividi um táxi pelos primeiros 70 Km com um engenheiro peruano chamado Paolo Herrera de 26 anos. Saímos de Nanpari e fomos até o seu acampamento em Ibéria. O acampamento pertence ao Consórcio Conirsa, responsável pela construção e asfaltamento da estrada. O consórcio é formado por três empresas peruanas mais a brasileira Odderbrecht. A previsão é que as obras estejam prontas até o fim de 2008.

Ao final de 4 horas percorri os 242 km até a cidade de Puerto Maldonado e no caminho paramos várias vezes para esperar as pesadas máquinas trabalhar na remoção e transporte de areia e todos os outros produtos químicos necessários na construção.

Segundo meu companheiro de viagem Paolo, mais de 400 homens trabalham diretamente na construção 24 horas por dia. Muitas mulheres foram contratadas para a obra, em geral elas passam o dia segurando placas de “PARA” ou “PROSSIGA” para alertar os motoristas. Usam pesados óculos escuros, chapéu, mas sempre sorriem quando os carros passam. É muito incomum ver mulheres formalmente trabalhando nessa região. Foi preciso contratá-las pois a demanda por mão de obra durante o asfaltamento da estrada é enorme para uma região tão despovoada.

O interessante de presenciar o asfaltamento de uma estrada na Amazônia de outro país é que os sentidos se alteram. Há menos paixão e que sabe um pouco mais de racionalidade. É também mais fácil julgar o quintal do vizinho, apesar que experiências devem ser compartilhadas. Afinal estamos falando do mesmo ecossistema.

Era domingo, e ver todas aquelas máquinas e homens trabalhando num dia escaldante, com a floresta na paisagem foi uma experiência magnífica e ao mesmo tempo terrível.

Por um lado, a possibilidade de atravessar a América do Sul em sua parte mais larga e selvagem, diminuindo custos de transporte, abrindo novas rotas de comércio e aumentando a integração entre o Brasil e alguns de seus vizinhos. Por outro, uma grande quantidade de floresta desmatada, e com a finalização da estrada a destruição aumentará de forma exponencial, contribuindo para a perda total da Floresta Amazônica.

05 / A Pororoca do rio Araguari.


O explorador francês Jacques Cousteau não foi o primeiro a registrar a Pororoca, mas sem dúvida foi quem a tornou mundialmente famosa. Suas imagens aéreas, feitas de um helicóptero, mostraram a grandeza e magnitude desse fenômeno natural.


Vinte e cinco anos depois, nossa missão era captar essa mesma onda, esse mesmo fenômeno. E assim como poucas outras coisas na Amazônia, quase nada mudou. A dificuldade de chegar ao local continua a mesma. É claro que há hoje em dia muito mais conhecimento. Qualquer rápida busca na Internet permite encontrar uma infinidade de informações.

Foi buscando essas informações, quando ainda preparava a logística para essa expedição, que conheci o rio Araguari. Um rio importante da bacia amazônica que, ao contrário de quase todos os outros, tem sua foz no Oceano Atlântico e não no rio Amazonas. Ele nasce nas montanhas que fazem divisa com a Guiana Francesa e cruza boa parte do estado do Amapá de leste para oeste. É na “boca” do rio com o mar que nasce a Pororoca. Esse fenômeno também acontece em outros rios do Pará e do Maranhão.

Escolhemos a lua cheia do mês de abril para encontrar a onda. Na verdade, a Pororoca acontece durante as luas novas e cheias. No entanto, nos meses de março, abril e maio o fenômeno é mais intenso graças à proximidade com o equinócio, que é quando o sol está alinhado ao Equador. É também quando a variação entre as marés baixa e cheia está maior. A Pororoca é um fenômeno que definitivamente depende da maré.

O ponto de partida foi Macapá, capital do Amapá. A cidade tem aproximadamente 300 mil habitantes, é agradável e não tem muitos edifícios. Da orla da cidade se avista os transatlânticos entrando e saindo do Brasil. É também um bom lugar para se observar a variação da maré. Na cheia, a água salgada encosta no muro. Na baixa, formam-se praias de lama de centenas de metros de extensão.

Nossa equipe era formada por seis pessoas, entre o câmera, engenheiro de som, assistente, e fotógrafa. Como chegamos um dia antes do previsto, aproveitei para elaborar a logística da filmagem, levando em consideração uma tomada tanto do ar (de helicóptero) como da água (de voadeira). Quatro dos integrantes da equipe deixaram Macapá por volta das 18h e foram de carro até uma cidade chamada Cutias do Araguari, já no rio Araguari. De lá, desceriam o rio de barco até uma fazenda próxima do local onde acontece a Pororoca. Eles seriam guiados por seu Dinaldo, morador e proprietário da fazenda que nos serviu de base, além de sua família. O câmera e eu combinamos de os encontrar no dia seguinte, uma vez que saíriamos de helicóptero de Macapá.

A forte chuva que me acordou às 5h da manhã era sinal de que nosso vôo estaria comprometido. Mesmo assim, fomos ao aeroporto, onde encontramos o comandante do helicóptero. Decolamos, mas dez minutos depois retornamos por causa do mau tempo.

O quebra-cabeça da logística recomeçou. Às 9h da manhã, recebemos a chamada por um telefone via satélite informando que os integrantes que saíram no dia anterior não haviam chegado à fazenda. Ou seja, já tinham perdido a Pororoca do dia, que estava prevista para acontecer por volta das 8h da manhã. Só nos restava um dia para filmá-la e seria muito arriscado contar novamente com o helicóptero. Ter a equipe pronta no local, mas a câmera sentada num quarto de hotel em Macapá seria uma tragédia.

A decisão foi alugar um pequeno avião, um Cesnna 206, e aproveitar o bom tempo da hora do almoço para chegar até o rio Araguari. Da pista onde aterrizamos até a fazenda do Sr. Dinaldo eram outras quatro horas.

Aproveitamos o avião para sobrevoar a foz do rio e estudar as condições. Percorremos toda a extensão do caminho que a onda percorre. É praticamente uma linha reta. A onda acaba na primeira grande curva do rio. Uns 30 quilômetros depois.

Num rasante sobre a fazenda do Sr. Dinaldo, jogamos uma garrafa de 600ml vazia para nossa equipe. Dentro uma mensagem, que dizia que os encontraríamos lá, chegando numa voadeira. Essa estratégia de comunicação eu havia aprendido no livro “Surfando na selva”, de Serginho Laus. Funcionou super bem.

Como erramos a entrada do Igarapé Novo, que dá acesso à fazenda, demoramos o dobro do tempo previsto e já era de noite quando chegamos.

Essa região do rio Araguari lembra muito o Pantanal do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul. Imensas áreas alagadas e uma enormidade de espécies de pássaros. A diferença é a influência do oceano próximo e os trechos de floresta amazônica. O Amapá é o estado que tem a cobertura florestal mais bem preservada do Brasil. São 17 unidades de conservação que ocupam cercar de 70% do território do estado.

No dia seguinte, por volta das 6:15h da manhã, consegui falar com o aeroporto em Macapá e o helicóptero já havia decolado. Três integrantes de nossa equipe saíram imediatamente de voadeira para a foz do Araguari e assim encontrar a Pororoca ainda em seu começo.

O helicóptero apareceu no momento exato. Foi emocionante quando o barulho quebrou o silêncio da manhã ensolarada.

Era pilotado pelo comandante Coimbra. Chico, o mecânico, o acompanhava trazendo 100 litros de querosene para o vôo de volta a Macapá. Já em solo, retiramos as duas portas da aeronave e instalamos os equipamentos de vídeo e de foto. Cada um apontado para um lado. Mark, nosso cameraman, sentado do lado direito, o mesmo do piloto. Carrie, nossa fotógrafa, do lado esquerdo. Fui na posição do co-piloto com o objetivo de traduzir as instruções que Mark me passava pelo rádio interno do helicóptero.

Amarramos os cintos e decolamos em direção a foz. O sol nascia no horizonte e atrapalhava nossa visão. Depois de 5 minutos já avistamos uma enorme linha que ia de margem à margem no rio Araguari. Era a Pororoca que há poucos minutos havia começado. A maré começava a subir até que num dado momento rompia o equilíbrio e as águas do mar avançavam rio acima formando a onda.

Mantivemos uma altura de 1000 pés, perto de 300 metros, para registrar a onda em toda a sua extensão. O sol batia bem na cara e atrapalhava bastante. Logo em seguida, avistamos a voadeira com o restante da nossa equipe literalmente fugindo da enorme massa d´água. Em seu começo a onda pode atingir uns três metros de altura dependendo da profundidade e formato da bancada de areia do leito do rio.

Uma vez registrado lá de cima, descemos quase ao nível do rio e acompanhamos a onda por uns 40 minutos. Algumas vezes tão próximos que a água movimentada pela força das hélices respingava em todos nós. Voávamos como “cowboys”. O barulho era enorme. A adrenalina a milhão. Nosso piloto habilmente dominava o helicóptero. Não economizava rasantes e manobras.

A experiência foi deslumbrante. A onda variava entre uma massa de espuma até uma parede lisinha de dois metros de face. Suficiente para “fazer a cabeça” de qualquer surfista que por lá se aventurar.

Já com pouco querosene voltamos para a fazenda deixando a onda para trás. Ela ainda percorreria outros 15 quilômetros.

06 / O Novo Jari.



A história dos grandes empreendimentos internacionais privados na Amazônia está recheada de grandes fracassos e alguns sucessos. Entre os fracassados temos a ferrovia Madeira-Mamoré, que se eternizou não por sua função de transporte de mercadorias e saída para os produtos da região, mas pela quantidade de mortos durante sua construção e total não aproveitamento de sua capacidade instalada. Ao fim da construção era praticamente nada. Um “trem fantasma”.

Tem também o caso de Henry Ford, que decidiu implementar um cultivo racional de seringueiras na região do rio Tapajós, próximo a Santarém. Ele não queria durante a II Guerra depender da Malásia como unico país fornecedor.

A falência do empreendimento que se iniciou em "Fodlândia" e depois mudou para Belterra, foi o advento dos materiais sintéticos.

O Projeto Jari, que foi idealizado no final da década de 60 por um dos homens mais ricos do mundo da época, o empresário norte americano Daniel Ludwig, já foi também citado como um grande fracasso. Uma “aposta bilionária” que esse visionário perdeu. Ludwig amargou enormes prejuízos financeiros e teve que vender seu “sonho” quinze anos depois. É também verdade que Ludwig tinha quase 80 anos quando iniciou o Jari. Seus “sonhos” estavam presentes em todos os continentes do Globo. Hotelaria, navegação, construção, agricultura faziam parte de seus incontáveis negócios.

Ludwig esperava suprir parte da demanda internacional de celulose para fabricação de variados tipos de papéis, exatamente como acontece nos dias de hoje.

Atualmente o Jari é controlado pelo grupo Orsa, que por sua vez é comandado pelo empresário brasileiro Sérgio Amoroso, que é da cidade de Birigui, interior paulista.

A área que pertence ao grupo é de 1,7 milhões de hectares, sendo que 7% são usados para o plantio de eucaliptos e aproximadamente 500 mil hectares têm o manejo sustentável de madeira nativa (a segunda maior área do mundo nesse quesito). Para que tenha noção do que significa uma área de 1,7 milhões de hectares, faça uma comparação com o Parque Nacional do Jaú. Ele é o segundo maior Parque Nacional do Brasil e tem 2.2 milhões de hectares.

Na primeira vez que estivemos no Jari, aterrizamos no pequeno aeroporto de Monte Dourado. Era de noite e usamos um vôo da Puma Linhas Aéreas que partiu de Santarém. Durante o trajeto aeroporto-centro, o que se via era estranho. Ao invés da forma desconfigurada e surpreendente de uma floresta nativa, a claridade dos faróis nos mostrava uma unidade quase perfeita de árvores finas, dispostas em fileiras intermináveis. Uma floresta nova, uniforme e sem cheiro. Fica nítido que tudo ali foi plantado.

De dia, porém, e de algum lugar mais alto e com vista panorâmica, talvez olhando do Amapá para o Pará, é possível avistar a incrível proporção entre o plantio de eucaliptos, a floresta nativa e a vegetação baixa de beira de rio em volta do rio Jarí. É esse rio que dá nome ao empreendimento. Ele nasce nas montanhas do Tumucumaque, divisa com a Guiana Francesa e Suriname. Sua foz é no rio Amazonas. Ao longo de todo o seu percurso divide os estados do Pará e Amapá.

Visitamos todo o processo produtivo. Do viveiro de mudas até a celulose embalada em unidades de 2 toneladas prontas para embarcar. De toda a produção, 80% é exportada para a Europa e outros 20% divididos entre os mercados brasileiro e norte americano. No ano de 2005, a produção atingiu seu recorde atingindo 364 mil toneladas de celulose branqueada.

A fábrica que transforma a madeira em celulose está sobre duas enormes plataformas e foram construídas no Japão. Foram trazidas para cá via navegação, percorrendo 28.706 km. Segundo Cristóvão Lins, que escreveu um livro muito interessante (Jari, 70 anos de história), esse episódio não teve similaridade na história da marinha mercante mundial e somente uma empresa aceitou o desafio de fazer esse transporte. As plataformas foram e até hoje se encontram assentadas sobre 3700 toras de maçaranduba, uma espécie de árvore abundante na região.

Dos 56 mil hectares plantados de eucalipto, 12 mil hectares estão no estado do Amapá, do outro lado do rio Jari. Foi nessa plantação que nos levaram para acompanhar a colheita das árvores. Para se chegar lá partindo de Monte Dourado tem-se que viajar por inúmeras estradas abertas pelo projeto. Essas estradas cortam a nova floresta uniforme em todos os sentidos. Em alguns momentos é possível avistar plantações que se perdem de vista.

O serviço da colheita é totalmente terceirizado e as máquinas chegam a cortar e depois picar, em 5 ou 6 pedaços, 2 árvores por minuto. É impressionante.

Do viveiro das mudas até o corte da árvore adulta são aproximadamente 6 anos, e as árvores de eucalipto chegam a 30 metros de altura. Tempo mais de duas vezes menor que em países concorrentes.

A maioria dos funcionários que trabalham na produção de celulose veio outros estados do Brasil, em geral, em busca de melhores oportunidades de trabalho. É a primeira geração.

Um deles, o engenheiro florestal responsável pelo viveiro de mudas que tem capacidade instalada para 14,4 milhões, me explicou que o eucalipto utilizado no processo da celulose não tem cheiro:

- O eucalipto de cheiro tem um óleo que prejudica o processo de extração da celulose ou da “pulp”.

É também uma floresta. Muito produtiva é verdade, mas sem cheiro.

07 / Motel pra Pirarucu.


Predador nato, podendo chegar a três metros de comprimento e pesar mais de 200 kilos o pirarucu, Arapaima gigas, é o maior peixe de água doce do mundo. Esse monstro das águas amzônicas é também um animal fiel, ao menos na fazenda de reprodução desses animais de propriedade de Alexandre Honczaryk, PhD e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Alexandre é mais dos que vieram do Sul e acabaram escolhendo a Amazônia como lar. Sua fazenda fica próxima a hidrelétrica de Balbina, umas duas horas de Manaus.

Segundo ele, controlar a reprodução desse belo peixe é um dos maiores desafios da aqüicultura, cultivo de peixes fora do ambiente natural.

- São oito anos até atingir a maturidade sexual. Além disso, é difícil saber quais casais são os mais apropriados.

A estratégia dele é interessante: num mesmo tanque ele coloca mais de 80 animais entre machos e fêmeas. Depois de muita observação é possível perceber a formação de alguns casais.

- Eles começam a namorar e se afastam do grupo.

O novo casal é então separado do resto do grupo via um pequeno túnel e ficarão juntos “até que a morte os separem”. Esse namoro é o melhor indicador da compatibilidade sexual entre os sexos opostos. Depois com uma série de controles hormonais o casal acaba virando uma máquina reprodutiva.

A aqüicultura e as fazendas de peixe são relativamente novas na Amazônia. Se bem estabelecidas podem ser a solução para evitar a sobre pesca e consequentemente a extinção de muitas espécies. O próprio Pirarucu já não existe mais em muitos rios e lagos da bacia Amazônica. Sua pesca é totalmente proibida a não ser em algumas reservas que dispõe de um plano de manejo aprovado pelo IBAMA.

No entanto, segundo Alexandre, entre 80% e 90% do Pirarucu consumido em Manaus é ilegal. Sua carne saborosa é muito apreciada.

A demanda por alevinos (filhotes de pirarucu) é muito maior do que a atual capacidade produção. Enquanto mil unidades ou milheiro de Tambaqui custa R$100, o milheiro de Pirarucu chega a custar R$ 6000. Oferta e demanda em ação.

A reprodução é somente o começo das dificuldades em procurar substituir, ainda que parcialmente, a pesca desses peixes em ambientes naturais pela produção em fazendas. Nos rios e lagos a dieta é em grande parte baseada em proteína. Espécies como Tambaqui e Matrinxã que também são criadas artificialmente têm sua dieta praticamente livre de proteína, mas o Pirarucu ainda precisa de pelo menos 40% de sua dieta em proteína animal.

Acaba sendo um pouco contraditório alimentar esses grandes peixes de fazendas com peixes menores que também vieram dos rios. No entanto, parece haver uma tendência entre nós de alimentar-mos de animais que ocupam o topo de sua cadeia alimentar. O problema é que essa posição é chave e esses animais são essenciais para a manutenção de um ambiente natural saudável.

08 / Quer conhecer a Amazônia? Vá ao Peru.


Não estou fazendo qualquer propaganda para as atrações turísticas de nosso vizinho, mas estou sendo sincero. Então, se tem uma graninha guardada e umas duas semanas pra “conhecer a Amazônia” vá ao Peru.


Fui conhecer a Reserva Nacional de Tambopata para ter algumas referências, “benchmark”, de instalações e políticas públicas de incentivo ao turismo, ou eco-turismo como alguns gostam de chamar, para um projeto no qual estava envolvido na época no Parque Estadual do Rio Negro, no estado do Amazonas.

Um grupo de turistas europeus e americanos e eu saímos de Porto Maldonado de voadeira subindo o rio Tambopata, que dá nome à reserva. Ela se encontra numa região conhecida como Andes Tropicais, que tem uma superfície de aproximadamente 30 milhões de hectares, indo da cordilheira Vilcabamba no Peru até o Noroeste da Bolívia.

Por conta da altitude elevada para os padrões da bacia amazônica, essa região tem uma incrível variedade de pássaros, inigualável em outros lugares. Não precisa dizer que essa variedade faz a alegria de turista, principalmente os “bird watchers” que rodam o mundo em busca de espécies exóticas para anotarem as descobertas em seu caderninhos.

O gestor da reserva é o INRENA (Instituto Nacional de Recursos Naturais), que está vinculado ao Ministério da Agricultura do Peru. Até 2001, o turismo nessa região, que é cercada por áreas protegidas, era praticado de forma desordenada e sem qualquer tipo de controle. No entanto a quantidade de turistas continuava aumentando e um plano de manejo bem elaborado criou regras e incentivos para que a atividade econômica totalmente alinhada a princípios de conservação decolasse. A localização de todos os empreendimentos turísticos é limitada a uma zona que dão o nome de “zona de amortecimento”. Dois anos depois, foram elaboradas as normas de condutas que, aparentemente simples, mostram um grande amadurecimento dos agentes envolvidos.

Quando áreas delicadas do ponto de vista ecológico se preparam para receber turistas, uma das prioridades é definir quais são os acessos que podem e que não podem ser utilizados, juntamente com a quantidade de turistas que será permitida irá, definindo assim o impacto inerente à atividade e o montante de recursos necessários para mitigá-los. Um dos funcionários do INRENA em Porto Maldonado e também um dos responsáveis pelo programa de turismo reforçou a idéia, mais uma vez aparentemente simples, mas negligenciada aqui no Brasil, de que:

- Só há disposição a pagar por algo quando há algo sendo oferecido em troca.

No caso da Reserva de Tambopata esse valor vem da quantidade de informação disponível, os programas de educação ambiental que envolvem as escolas de Porto Maldonado e principalmente a presença constante, muitas vezes no caráter de fiscalizador, do gestor da área. Lá existem nove postos de controle e mais 30 guarda-parques.

Longe de mim, querer sugerir que é papel do governo, seja estadual ou federal, oferecer esses serviços. Mas é papel sim oferecer linhas claras de uso, conduta e monitoramento, além das garantias necessárias para a iniciativa privada e a comunidade local investirem. Nada muito diferente do que já fazem em Tambopata.

Quando passei por lá, estavam prestes a iniciar um novo plano de uso turístico e abrir concessões privadas para atividades turísticas em três lagos localizados dentro da reserva.

Quem possui uma dessas concessões é uma empresa chamada “Rain Forest Expeditions” (TRC), que administra um “lodge” para turismo e pesquisas científicas o “Tambopata Research Center”.

De arquitetura simples, bom gosto e bastante prático o TRC, como é chamado, enche os olhos de qualquer mortal que já pensou alguma vez em montar uma pousada num lugar paradisíaco. Foi lá que passei duas noites depois de subir o rio Tambopata por aproximadamente seis horas numa voadeira pouco veloz.

Às 4h30 meu guia me acorda para ir ao fantástico “Macau clay click” que é um paredão de aproximadamente 30 metros de altura e 100 de comprimento, na beira do rio, e que serve como refeição matinal para centenas de araras de todas as cores possíveis e milhares de papagaios e periquitos.

O dia mal amanhece e já estamos estrategicamente posicionados em baixo de alguns arbustos, armados de binóculos e câmeras fotográficas, em frente ao Clay. Aos poucos os pássaros vão se aproximando e formando um espetáculo sensacional, uma verdadeira algazarra de cores e sons.

De acordo com uma palestra que assisti naquela mesma noite no TRC, as aves comem a argila como forma de desintoxicar e complementar sua dieta a base de frutas. A “Colpa Colorado”, como é conhecida, é considerada a maior do mundo. Coincidentemente estive na melhor época para observação desses animais, era o mês de setembro.

O turismo definitivamente não é a panacéia para a Amazônia brasileira, mas regiões próximas à Manaus, Belém, Macapá e tantas outras, que disponham de um bom aeroporto, têm muito que aprender com esse caso peruano.

09 / De Manaus a Tefé.


Passar pelo encontro das águas dos rios Negro e Solimões tem nome próprio e é destino turístico dos que visitam Manaus pela primeira vez. O “Encontro das Águas” é impressionante e belo. Quem sai de Manaus de barco com destino a Tefé tem que passar pelo encontro para entrar no rio Solimões. A água dos dois rios é completamente diferente. A do rio Negro é acida e escura, enquanto a do Solimões é rica em nutrientes e é marrom, da cor de um “todyinho”.

Nosso destino era a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. No dia da partida, acordei cedo. Era a primeira vez que iria navegar pelas águas marrons do rio Solimões. O plano era zarpar do píer do hotel Tropical em Manaus às sete da manhã. No entanto, durante o abastecimento da noite anterior, a tripulação notou um problema na sala de motor do barco, e quando solucionado já passava das três da tarde.

Ariaú-Açu é o nome do barco que usamos para essa e todas as outras expedições que realizamos. Medindo mais de 100 pés, o barco tem quatro conveses sendo que no último há um heliporto. É veloz e tem um calado de apenas 1,80 metros, ideal para os rios da Amazônia.

O barco é de propriedade do Dr. Francisco Ritta Bernardino, mais conhecido por Dr. Ritta. Inspirado pelo lendário explorador Jacques Cousteau na década de 80, ele construiu um “lugar onde turistas pudessem apreciar a beleza, grandiosidade e importância da Amazônia”. Esse lugar é o Ariau Amazon Towers, maior e mais visitado hotel de selva da Amazônia. Por ter sido um dos primeiros e estar localizado próximo à Manaus o negócio deu tão certo que hoje Dr. Ritta é provavelmente o mais bem-sucedido empreendedor da Amazônia brasileira.

O dia já ia terminando quando finalmente cruzamos o “Encontro das águas”. José tinha as mãos firmes agarradas ao timão e os olhos fixos no horizonte. Ele era o nosso “prático”, ou seja, a pessoa que conhece bem o rio e que auxilia o capitão na condução da embarcação. Não há navegação de grande porte na Amazônia sem a presença de um prático. Principalmente na época da seca quando as águas dos rios estão muito baixas e qualquer descuido significa topar num banco de areia ou pedregal.

A idéia era navegar dia e noite para poupar tempo, mas nessa primeira noite José preferiu atracar em frente à cidade de Manacapuru. Num tom sóbrio esse homem de 1,90m de altura, impecavelmente vestido de branco como na marinha, me disse:

- Aqui tem muita pedra e eu só me garanto de dia.

Mais alguns dias e percebemos que José não tinha lá tanta experiência e era bem covardão. Em toda vila ele queria dar uma paradinha alegando que queria encontrar algum médico ou remédio. Maciel, o nosso capitão só cedeu nessa primeira noite, depois não paramos mais, navegando 24 horas por dia.

No começo é tudo novidade e você não quer desgrudar os olhos da margem. Depois fica monótono e com o calor fica tudo mais monótono e a preguiça é dominante. A vontade é balançar o dia todo na rede.

No terceiro dia, passamos por Coari. Ali bem próximo, a Petrobrás administra a província petrolífera de Urucu e tem atividades de extração de petróleo e gás natural. Esse último ainda a ser extraído. No dia 2 de junho de 2006, o presidente Luís Inácio Lula da Silva inaugurou oficialmente o início das obras de um gasoduto que levará essa forma de energia até Manaus, capital do Amazonas. Jornais regionais anunciaram o ato como o começo da era do gás natural . Em ato simbólico o presidente acompanhou a solda entre dois tubos para conduzir o gás, que tem em média 19 polegadas de diâmetro. As obras, como todas desse porte na floresta, contou com trabalhos de batalhões de engenharia do Exército. Nesse dia da “inauguração”, 279 dos 670 km de gasoduto já estavam finalizados, segundo a Petrobrás.

Na noite do terceiro dia, chegamos ao nosso destino. Foram sessenta horas de navegação.

10 / Uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável.


Durante todas as expedições que realizamos, o líder foi um sujeito engraçado e experiente chamado Don Santee. Don já passou dos cinqüenta e, há mais de trinta anos, roda o mundo em busca de aventuras e mergulhos. Ele foi um dos mergulhadores na expedição da década de oitenta, e é uma espécie de velha geração de exploradores que ainda mantêm o espírito incansável de buscar o desconhecido.

Don adora contar os causos que passou ao lado de Jacques Cousteau, com quem começou a viajar e mergulhar. Uma dessas expedições aconteceu no começo da década de oitenta. Segundo ele, o que mais mudou na Amazônia nesses últimos 25 anos foi a questão da regularidade e controle das áreas. Quando me disse isso, estava bastante influenciado pelos dias que passamos em Mamirauá, ou melhor, Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.

Para cada decisão de onde filmar ou qual local explorar era necessário consultar as pessoas responsáveis, ter guias acompanhando e até respeitar limites de velocidade em nossas voadeiras. No entanto, essa evidente organização política, educacional, institucional, ambiental e funcionando é ainda muito escassa na nossa Amazônia. Mamirauá é um exemplo a ser seguido.

Acompanhei o trabalho de filmagens organizando operações diárias de ida à campo e adaptando-as a uma logística razoável. Durante duas semanas, passava horas envolvido com barcos, guias, refeições e buscando novas histórias, contos e cantos. O que mais me chamou atenção é um projeto de manejo de tartarugas (Tracajás e Içanas) coordenado por um atencioso paraense chamado Paulo Henrique. Nas oito comunidades envolvidas, Paulo ensina técnicas simples de identificação de ninhos e remoção para lugares mais seguros. Depois, busca-se a temperatura ideal para gestação, já que poucos graus de diferenciam qual será o sexo do animal. Dezenas de tartaruguinhas nascem das ninhadas e ainda são alimentadas e cuidadas por uns dois meses antes de serem soltas pelos moradores.

Boa parte da comunidade, principalmente as crianças, acaba envolvida com o projeto mesmo que indiretamente. Depois de perderem o cheiro de ovo que é muito atrativo a predadores e ter casco mais fortalecido as tartaruguinhas são liberadas na praia. Instintivamente todas vão rapidamente para a direção do rio. Emociona assistir a esse espetáculo. Indiretamente o projeto preserva muitos outros animais, principalmente pássaros que também usam as praias, agora protegidas, para desova.


Segundo o Ministério do Meio Ambiente, uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável é área natural que abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se na exploração de recursos naturais e que desempenham papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica; visitação pública condicionada ao Plano de Manejo; domínio público.

Mamirauá tem alojamento pra turistas e um ótimo programa de ecoturismo. A região é fascinante e a biodiversidade incrível. Durante boa parte dos dias que passamos por lá o aeroporto de Tefé, a cidade mais próxima, estava fechado devido à quantidade de urubus perto da pista. Essa total falta de atenção do poder público local mostra imaturidade e falta de visão, afinal qual é o turista que nos dias de hoje pode “gastar” três ou quatro dias viajando para chegar ao seu destino. O turismo na Amazônia e todos os benefícios associados a essa atividade econômica dependem fundamentalmente de um transporte aéreo eficiente e regular. É o mínimo que se pode esperar de um poder público comprometido com o desenvolvimento sustentável dessa região.

Depois de muitos dias na reserva e muitas tentativas frustradas, finalmente avistamos um grupo de Uacari Branco. Esse exótico macaco branco de cara bem vermelha é endêmico dessa região, ou seja, não existe em outros lugares. O grupo se alimentava de uma castanha localmente conhecida por Matá-Matá. Durante dois dias inteiros, ficaram totalmente indiferentes à nossa presença do outro lado do lago.

Foi por conta de estudos sobre esses primatas realizados pelo falecido pesquisador Márcio Ayres que começou o movimento que acabou resultando na criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá.

11 / Rodovia das Contradições.


A BR-163 é a estrada que liga Cuiabá, capital do Mato Grosso, a Santarém, segunda maior cidade do estado Pará e cotada como futura capital do ainda inexistente estado do Tapajós. Não é a toa que o apelido da estrada é Cuiabá-Santarém. Santarém está na margem direita do rio Tapajós, estrategicamente localizada em sua confluência com o rio Amazonas. No total, a estrada tem aproximadamente 1800 km.

Percorri duas vezes o trecho de 354 km entre Santarém-Itaituba. Aqui, como em todo território Paraense, a estrada ainda não está asfaltada. Como era época da seca, mês de outubro, a estrada estava transitável. É verdade, porém, que em alguns trechos chegava a ter dó do carro que dirigia: uma Toyota Hilux (alugada em Santarém).

A estrada foi aberta em 1972 dentro dos programas federais de integração nacional, os mesmos que trouxeram os imigrantes que hoje habitam essa região. O lado Mato-Grossense com 772 km está asfaltado em toda sua extensão.

Até o município de Belterra (beaultiful land) o asfalto ilude o viajante inexperiente. No trevo da cidade tem uma antiga máquina de esteira. O “monumento”, bastante castigado, é símbolo de uma das épocas de otimismo da região. Foi quando Henry Ford decidiu implementar um cultivo racional de seringueiras para abastecer o volumoso mercado de borracha natural.

Nesse dia, 15 de outubro, dia da República, era até divertido dirigir por Belterra. As casinhas construídas na época de Ford ainda estão bem conservadas e em funcionamento. Nem parece que estamos no Brasil. É claro que mudaram de função. Uma delas, na antiga Vila dos Americanos, serve como sede da EMBRAPA. Há muitas pesquisas sobre o solo, água e fauna dessa região, que são riquíssimos.

Como era feriado aqui no Brasil, achei conveniente pegar uma praia.

O rio Tapajós com suas limpas e puras águas azuis forma praias quilométricas durante os meses de seca. Apesar do município vizinho de Alter do Chão levar a fama, Belterra guarda praias de indescritível beleza e água doce.

Depois de apenas uma Cerpa gelada, cerveja tipicamente Paraense, quase me convenci de que seria melhor dormir por ali e seguir caminho só no dia seguinte. “Mas trabalho é trabalho até no feriado”, pensei para me convencer a voltar à caminhonete. Já passava do meio-dia e acreditava que chegaria a Itaituba ainda naquele dia.


Entre Belterra e Rurópolis talvez esteja o pior trecho da rodovia. Crateras enormes aparecem a cada cem metros, mas como não chovia há meses, devagar se passava bem. Durante esses 180 km de sofrimento ao volante, a paisagem à direita é deslumbrante. Uma enorme floresta se ergue majestosa, é a Floresta Nacional do Tapajós, ou, FLONA Tapajós.

Criada em 1974, essa unidade de conservação tem 545 mil hectares. Inúmeras placas ao longo da estrada mostram que a FLONA Tapajós é utilizada como base para pesquisas do LBA ( Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia).

Floresta Nacional (FLONA):
área com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas e que tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração sustentável, sendo permitida a permanência de população tradicional existente quando da sua criação.


Não resisti ao ver uma porteira aberta e entrei alguns quilômetros FLONA adentro. Não é em todo lugar que se tem uma estradinha em meio a uma floresta exuberante. Com o carro desligado tive a sensação de estar num corredor de floresta. Árvores gigantescas em cada lado da estrada e muitos pássaros e pios. Um casal de araras quebrou minha contemplação e resolvi voltar para a estrada antes que alguém me visse lá dentro.

Por volta do km 110 parei antes de uma ponte para conferir o mapa e a caminhonete pifou. Virava a chave e sequer uma luzinha no painel acendia. Comecei a me imaginar no lugar dos caminhoneiros que não tem outra opção a não ser viajar por estrada solitária e contraditória.

Por um lado o asfaltamento permitirá um maior acesso a essa rica região e diminuirá custos com transporte das mercadorias industrializadas que vem de Manaus para o Sudeste do país. Em relação aos benefícios para a produção agrícola do Centro-Oeste, o seguinte trecho extraído do documentário Amazônia Revelada é contundente:

- A soja do norte do Mato Grosso roda alguns milhares de quilômetros para o Sul e é embarcada nos enfartados portos de Santos ou Paranaguá, para depois navegar outros tantos mil quilômetros para o Norte e finalmente chegar à mesma latitude. Há décadas esse produtor a dois passos do rio Amazonas sonha com a possibilidade de atender pelas portas da frente, muito mais próxima dos consumidores europeus e asiáticos.

Menos evidentes, ao menos no curto prazo, são os custos ambientais. Num estudo intitulado “A pavimentação da BR-163 e os desafios a sustentabilidade”, pesquisadores de várias organizações calculam os custos ambientais do asfaltamento na ordem de 1,5 bilhões de dólares num cenário sem governança, ou seja, sem ações efetivas do governo federal. Esse mesmo estudo cita ainda que no lado mato-grossense que já está asfaltado, 54% das áreas florestais a cinqüenta quilômetros da estrada foram desmatados. No Pará esse número é de apenas 3%, mas crescendo exponencialmente.

Tive mesmo que abandonar a idéia de chegar a Itaituba e aceitar o fato de dormir na caminhonete na beira da estrada. Poucos veículos passaram por mim naquela noite. Na manhã seguinte encontrei um boteco-beira-de-estrada e um sujeito resolveu “olhar minha situação”. Na primeira tentativa o carro funcionou misteriosamente, envergonhado segui caminho. Pouco depois encontrei um eletricista que apertou os cabos da bateria. Devido às trepidações eles estavam mal conectados o que explica a falta de partida do dia anterior.

Em Rurópolis, cidade de entroncamento entre a Rodovia Transamazônica e a BR-163, há uma placa em frente ao hotel Médice que data de 1974 e retrata o espírito da época em que essas estradas eram abertas:

- A Amazônia de hoje é o inacreditável lugar onde aparecem de mãos dadas a fantasia e o real; o épico e o impossível, a epopéia e a lenda.

Inacreditavelmente e em pleno séc.XXI a frase ainda faz sentido. Basta lembrar que para a maioria de nós brasileiros a imagem da Amazônia não é diferente das descrições que os portugueses faziam do Brasil na época do descobrimento.

Para chegar a Itaituba é ainda preciso cruzar de balsa o rio Tapajós. A cidade que já viveu seu apogeu na década de 80 por conta do ouro, hoje tem na pecuária sua fonte de sustento. Mas me pareceu decadente. Nos portos a única mercadoria que vi aguardando para ser transportada era madeira. Legal ou não, não pude descobrir. É bem possível que esse cenário se altere quando a BR-163 for mesmo asfaltada.

12 / Enchendo o tanque na Bolívia.


De manhãzinha, um taxista e eu saímos de Rio Branco, capital do Acre, e como destino tínhamos a cidade fronteiriça de Assis Brasil, na divisa com o Peru. É o próprio Rio Acre que divide os dois países nesse trecho.

No caminho, há uma entrada à direita para Xapuri. A cidade é o reduto do PT nesse pequeno estado e tem fama internacional por ter sido a cidade de Chico Mendes. Nos seringais lá de perto ele iniciou sua carreira política, voltada para a conservação das florestas e de seus habitantes, principalmente os seringueiros, como ele. Em sua própria casa foi cruelmente assassinado.

Vale a pena visitar o pequeno museu, bem perto do Rio Acre, que conta a história da colonização do Estado, o ciclo da borracha e a guerra com a Bolívia. De lá copiei em meu diário as seguintes informações e acontecimentos históricos. O mérito é todo dos curadores do agradável museu:

· Manuel Urbano da Encarnação foi o primeiro que subiu o Rio Acre até suas cabeceiras procurando uma comunicação fluvial com os afluentes do rio Madeira. Antes só havia índios;
· Sírios e Libaneses eram os verdadeiros fenícios da Amazônia;
· Revolução Acreana: Plácido de Castro e Barão do Rio Branco;
· No acre o extrativismo da borracha estabeleceu relações sociais, culturais e políticas profundas entre os homens e entre esses e a floresta;
· Em 1985, foi o primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros, liderado por Chico Mendes. “Resistir contra o desmatamento que transforma a floresta em pasto”;
· Poronga: é lanterna de querosene que os seringueiros carregam na cabeça;
· Índios, ribeirinhos e seringueiros se juntaram formando a Aliança dos Povos da Floresta, também liderada por Chico Mendes.

Perto da saída do museu (tudo é perto na pequena Xapuri) há uma pracinha central de onde se avista o quase seco Rio Acre. De uma caixa de som que fica ligada o tempo todo saía um funk carioca: “de ladinho agente gosta”. Fez-me lembrar que ali ainda era o Brasil.

De volta a estrada o que se vê é poeira, gado, castanheiras e fumaça.

As castanheiras são proibidas de serem derrubadas. De nada adianta, porque depois que a floresta vira pasto elas morrem do mesmo jeito. Segundo meu motorista, naquele dia:

- São tão bonitas que dá até vontade de fazer amor com elas.

Paramos em Epitaciolândia para almoçarmos e também porque tinha que dar saída na Polícia Federal para entrar no Peru com a documentação correta. Passamos para o lado boliviano, numa cidade chamada Cobija, em busca de gasolina barata. Por motivos “políticos”, para não dizer “diplomáticos”, brasileiros estavam proibidos de abastecer em qualquer posto oficial, a não ser os que compravam um cartãzinho que lhes dava o direito de abastecer uma certa quantidade dez vezes durante um certo período. Sei que não valia a pena adquirir o tal cartãozinho, ao menos pro meu motorista. É claro que uma proibiçãozinha dessa não nos impediria de comercializar com nossos vizinhos, ainda mais se tratando de combustível. Ele conhecia o irmão de uma mulher que trabalhava num dos postos de gasolina e que vendia o combustível em frente a sua própria casa.

- Melhor ainda! - Ele me disse. Assim ainda arrumo mais uma namoradinha boliviana. - Todo à vontade na sala da moça.

Com gasolina boliviana e carro brasileiro chegamos em Assis Brasil antes do anoitecer. Ainda tive tempo de atravessar o Rio Acre, com a água nas canelas, para procurar um transporte até Porto Maldonado, Peru adentro.

13 / Por cima da Floresta.



Como a Amazônia funciona, representando um grande ambiente regional e qual a sua influência no clima global? Como as mudanças no uso da terra na Amazônia e as mudanças no clima afetam as funções biológicas, químicas e físicas da Amazônia, incluindo a sustentabilidade do desenvolvimento da região?

São respostas para essas duas perguntas que o maior projeto de cooperação científica internacional na Amazônia busca formular. Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia ou simplesmente LBA, como é conhecido, esse projeto foi iniciado em 1998 e tem mais de 120 pesquisas em andamento com a participação de mais de 1600 pesquisadores brasileiros e internacionais. Agências como a NASA e tantas outras da Europa estão envolvidas. Num país onde ciência e pesquisas são muitas vezes negligenciadas e colocadas em segundo plano, o LBA é sem dúvida um divisor de águas.

A idéia é mostrar a relação entre a Amazônia e os ciclos naturais da Terra, principalmente os que estão conectados diretamente ao clima. As conclusões mais preliminares mostraram que é em escala global e não somente regional que este enorme ecossistema se torna importante para a manutenção da saúde do planeta todo.

São 16 torres construídas por toda a Amazônia e munidas de aparato necessário para medir e entender a inter-relação entre floresta e atmosfera. A principal dessas torres e também a base para os pesquisadores e cientistas estão localizadas há apenas duas horas de Manaus: uma asfaltada e outra em estrada de terra. Mantida pelo Instituto de Nacional de Pesquisas da Amaziônia (INPA), essa base pode abrigar até 15 pessoas com relativo conforto. Com 52 metros de altura a torre é toda feita em alumínio e foi construída na Holanda em 1999.

A vista do topo é fantástica. A impressão que temos é a de estar flutuando sobre um enorme tapete de diferentes tons de verde. Papagaios e macacos são facilmente avistados contrastando com equipamentos de última geração em coleta e análise de gases, temperatura e mudanças atmosféricas.

Em minha primeira visita à torre fui guiado por Alexandre Santos, que na época era meu vizinho em Manaus. Passamos mais de duas horas juntos no topo da torre. Enquanto ele fazia sua coleta semanal dos dados acumulados com um pequeno laptop, me explicava as razões do projeto e as últimas descobertas científicas. Era 23 de Agosto de 2006. Poucas semanas depois, Alexandre se tornou um dos 155 passageiros do vôo da Gol que colidiu com outra aeronave entre Manaus e Brasília. De alguma maneira fica aqui minha homenagem ao jovem cientista.

Entre todos os pesquisadores do INPA, o norte-americano Philip Fearnside é em minha opinião o mais destacado e sem dúvida um dos mais ativos. Pesquisador do departamento de ecologia, Fearnside mora e estuda a Amazônia brasileira há mais de 30 anos. Já participou, na maioria das vezes como principal autor, de mais de 390 publicações que de alguma maneira relaciona as contradições entre desenvolvimento e meio ambiente. Utilizando modelos de computador, ele prevê o futuro da Amazônia baseado nos atuais níveis de desmatamento, migração humana, rodovias existentes e planejadas, e outros projetos de infra-estrutura em geral.

Magro, muito alto, com um grande par de óculos e um enorme bigode grisalho que esconde o movimento de sua boca enquanto fala, Fearnside foi entrevistado no topo da torre da LBA e suas respostas e explicações mostram um profundo conhecimento dos ciclos naturais desse fantástico ecossistema. Ele vem ocupando os últimos anos de sua vida profissional estudando a relação entre a Amazônia e o aquecimento global:

“A forma como medimos a quantidade de CO2 na atmosfera é em partes por milhão (ppm), sendo a média no mundo hoje 380 ppm. Muitos cientistas consideram 400 ppm como ´perigoso`. Com as atuais atividades industriais esse número está aumentando em 2,6 ppm todos os anos, nos aproximando de conseqüências muito sérias. Daí a urgência de diminuir drasticamente essas emissões.

A Amazônia tem um papel chave nesse processo, além é claro da redução drástica na queima de combustíveis fósseis. Então é necessário acabar com o desmatamento já! Pois trata-se de uma tremenda adição de gases que causam o aquecimento. No Brasil é a principal fonte de emissão e sua redução pode ser benéfica para o país, pois o que está sendo produzido pelas pastagens que substituem as florestas é mínimo comparado ao tamanho da economia brasileira.

Por outro lado os chamados ´serviços ambientais` que mantém a quantidade de chuvas e evitam uma série de impactos são muito mais valiosos. É uma questão de traduzir esse valor numa maneira que mude a forma como as decisões são tomadas. É uma tremenda oportunidade que ainda não foi realizada. A questão do carbono é só a primeira que dispõe de um mecanismo monetário associado, mas há muitas outras envolvidas como, por exemplo, água e biodiversidade.

Temos que acelerar o processo diplomático para que tenhamos esses mecanismos em prática antes que percamos mais florestas e consequentemente seus ciclos, tornando o processo de aquecimento global ainda mais difícil de se controlar.”

Ouvir esse ilustre cientista me dá a certeza de que aquilo que já sabemos a respeito da Amazônia é suficiente para formular as devidas políticas públicas, evitando seu colapso e consequentemente o colapso do clima no planeta.

14 / Viagem ao Jauaperi.


Encontrar um lugar na Amazônia para mergulhar que tenha uma visibilidade decente é um desafio. Conversei com vários pesquisadores que trabalham com peixes e mamíferos aquáticos, consultei a literatura e mesmo assim esse lugar parecia não existir. Uma das esperanças eram os afluentes do rio Tapajós, no Pará, onde até encontramos visibilidade, mas pouquíssima vida animal. Outra tentativa foi no rio Javari, Amazonas fronteira com o Peru, onde nos deparamos com alguma vida, mas pouca visibilidade.

A primeira vez que ouvi falar das transparentes águas do rio Xixuaú foi numa conversa com Vera da Silva, uma das mais importantes pesquisadoras de mamíferos aquáticos da Amazônia. Com seu jeito calmo e quase transcendental, ela nos disse que o rio Xixuaú era um afluente do rio Jauaperi, que por sua vez é afluente do rio Negro. O melhor lugar para mergulhar se encontra ao sul do estado de Roraima.

A maior parte da nossa equipe havia partido de Manaus havia duas semanas. Iriamos nos encontrar na foz do rio Jauaperi. Éramos quatro, além do piloteiro, o Raimundo, e seu ajudante.

Encontrei Raimundo no porto de Manaus na tarde anterior a nossa viagem. Ele tinha uma voadeira grande, que permitia levar todos nossos equipamentos, que eram muitos. Com um motor de 85hp fiquei confiante que faríamos o percurso Manaus-Moura (vila próxima à foz do rio Jauaperi no rio Negro) em umas 13 horas.

Partimos cedo. Subindo o rio Negro, a partir de Manaus, à direita era possível ver uma mata alta e aos seus pés areias brancas. À esquerda a floresta é mais baixa e no lugar da areia havia uma grama verde de nova que só aparece nos tempos da seca.

A floresta da esquerda é mais baixa, pois ela está sobre ilhas, que formam o arquipélago de Anavilhanas. A maior parte do arquipélago constitui a Estação Ecológica de Anavilhanas, que foi criada em 1981 para proteger e preservar as mais de 400 ilhas do arquipélago, sua respectiva biodiversidade e beleza cênica. O Rio Negro é o principal curso fluvial que se ramifica em centenas de igarapés, paranás, canais e alguns enormes lagos que se formam entre as ilhas. Diferente da maioria das Unidades de Conservação (Áreas Naturais protegidas) brasileiras, a estação tem sua situação fundiária totalmente regularizada, ocupando uma área de aproximadamente 350 mil hectares entre as ilhas e um pedaço de terra firme.

Estação Ecológica (ESEC): é uma unidade de conservação federal que tem como objetivo a preservação da natureza e a realização de pesquisas científicas. É proibida a visitação pública, exceto com objetivo educacional e a pesquisa científica depende de autorização prévia do órgão responsável.


Foi justamente dentro do arquipélago, no canal principal e a caminho de Novo Airão, que nosso motor deu a primeira engasgada. Raimundo se espantou. Parecia até que era a primeira vez que via seu querido 85hp engasgar. Quando paramos para “olhar” o problema, percebi que Carlos, o ajudante de Raimundo, tinha só os dois dentes da frente e pés que pareciam de uma tartaruga, ou qualquer outro anfíbio. Foi o pretexto para que ele começasse a falar. Coisa que não parou de fazer por horas. Até com dois americanos da equipe ele conversou, apesar de não falar uma palavra sequer em inglês.

Passaram mais de três horas de teorias sobre as causas do problema no motor e tentativas frustradas de consertá-lo.

- Ao menos quando voltar para Manaus serei um mecânico melhor. – disse Carlos sem perceber o tamanho da encrenca em que nos metíamos.

Entre remadas, trancos, engasgos e alguns breves momentos de alguma potência, conseguimos chegar a Novo Airão, cidade localizada à margem direita do rio Negro e bem em frente do arquipélago. Lá encontramos um mecânico mal humorado que fez pouco caso do nosso problema. Enquanto Raimundo trabalhava na máquina, fui procurar algum outro motor que serviria de estepe caso os problemas continuassem. Depois de rodar a cidade toda de moto-taxi, encontrei um Yamaha de 40hp que seu dono só concordou em alugar caso viesse junto a bordo. Sem opção ganhamos peso extra e mais uma barriga para alimentar.

A parada em Novo Airão nos deu a breve esperança que nosso 85hp funcionaria redondo e que a partir dali e que em mais seis horas estaríamos no Jauaperi. Doce engano, o motor engasgou de novo tão logo partimos da pequena cidade. Finalmente convenci Raimundo e Carlos a trocarem o motor problemático pelo recém adquirido estepe. Esses motores de popa, principalmente o de 85hp, pesam muito e trocá-los com água acima dos joelhos, próximos a uma praia e escurecendo, foi uma tarefa que nos consumiu quase uma hora. E a última luz do dia.

A voadeira era larga e o motor curto para ela. Assim ele não ficava por inteiro dentro dágua. Além disso, ela formava um vácuo embaixo do casco faltando água suficiente para tracionar a hélice do motor. O resultado é que começamos a viajar numa velocidade inferior à das tradicionais “rabetinhas” que usam motor de apenas 5hp.

Todos perceberam que naquela velocidade lavaríamos a noite toda e um bom pedaço do dia seguinte para chegar ao nosso destino. No entanto, o clima já estava tão pesado que ninguém abriu a boca.

Já era por volta das dez da noite quando o motor parou. A ausência do barulho e de movimento fez com que todos acordassem. Raimundo começou a falar e repetir que naquela velocidade não dava para continuar. Ele dominava o dono do motor com sua fala acelerada. Tive um momento de absoluta inspiração e objetividade e pedi para que deixasse o rapaz falar. Um pouco nervoso ele falou que já havia feito esse percurso de rabetinha inúmeras vezes e que gastaríamos outras 15 horas a partir de onde estávamos. Apesar de um olhar quase ameaçador de Raimundo, decidi que continuaríamos viagem. A outra opção era voltar a Novo Airão onde dificilmente conseguiríamos uma outra voadeira e perderíamos pelo menos dois dias.

Tive uma gostosa sensação de liderança, de contornar um momento difícil e seguir rumo a um objetivo. Durou pouco, quando na manhã seguinte, já sem comida alguma no barco, tivemos que nos contentar com uma saudável mistura de rum com cerveja de café da manhã. Quando finalmente encontramos o Ariaú-Açu, nosso barco e casa durante as expedições, já se passava das três da tarde. Ao todo foram 34 horas de viagem.

15 / Santarém e a soja.


Santarém é uma cidade bem localizada. Está na margem direita do rio Tapajós, estrategicamente em sua confluência com o rio Amazonas. É um ponto eqüidistante entre Manaus e Belém. Está relativamente próxima à foz do rio Madeira, o que permite uma boa integração com outros estados amazônicos como Rondônia e Amazonas. Qualquer navio de carga ou de turismo independente de seu calado pode chegar até Santarém. A cidade tem aproximadamente 370 mil habitantes.

É essa localização estratégica que vem atraindo investimentos privados como a construção de um terminal fluvial (porto) pela Cargill, empresa americana que compra, estoca, processa, transporta e exporta grande parte da soja brasileira produzida no Centro-Oeste.

Falar em soja no Brasil é uma faca de dois gumes. De um lado um importante produto das exportações brasileiras, de outro, um setor que vem sendo associado ao desmatamento na Amazônia.

Santarém se encontra no meio disso tudo. Recentemente, a cidade teve bastante exposição na mídia brasileira e internacional graças à publicação, depois seguida de atos públicos, de um relatório-denúncia feito pelo Greenpeace. Intitulado: “Eating-up the Amazon”, literalmente traduzindo para “comendo a Amazônia”, nesse relatório como em um filme policial lê-se:

O cenário: A floresta Amazônica
O crime: A destruição da floresta
Os criminosos: Archer Daniels Midland (ADM), Bunge e Cargill
Os parceiros: Os consumidores europeus

Estive em Santarém cinco vezes nesses últimos tempos, mas em nenhuma delas passei mais de três dias. Escrever sob um tema delicado como esse talvez exigisse mais tempo. Principalmente quando não há intenção de levantar bandeiras.

Quando a soberania da Amazônia estiver de fato ameaçada, Santarém será o foco da resistência brasileira. Devaneios a parte, é esse o clima da cidade que presenciei por duas vezes. Na segunda delas, o porto da Cargill se encontrava proibido de operar pelo Ministério Público.

É claro que os sojicultores são os mais indignados, mas esse sentimento também é presente entre comerciantes, lojistas e empresários. Em Santarém muitos carros exibem um grande adesivo dizendo “Fora Greenpeace. A Amazônia é dos brasileiros”.

Em visita a Coperamazon (uma cooperativa de produtores rurais), recebi um boletim informativo chamado de “Amazônia é dos brasileiros”, lê-se:

"A invasão estrangeira capitaneada pelos mecanismos internacionais, criaram “mercenárias ONGs” como a WWF e o Greenpeace, para atuarem como seus guerrilheiros ideológicos, desejam nos impor um modelo econômico que não foram capazes de defender em seus países. A verdadeira pretensão dos paises ricos é transformar a Amazônia em suas reservas particulares. Não vamos permitir a colonização ideológica e econômica por grupos, que em suas nações, não passam de anarquistas, sendo incapazes de convencer norte-americanos e europeus dessa consciência ecológica que defendem. Nós não vamos e nem queremos destruir a Amazônia, nossa consciência ecológica nasce do respeito que temos em desenvolvê-la economicamente e mante-la como um patrimônio soberano dos brasileiros (soberania nacional). Brasileiros engajados ao Greenpeace ou são ingênuos mal informados ou mercenários antipatriotas bem pagos. Vamos defender pelo o que é nosso."

O porto da Cargill custou, segundo a empresa, 20 milhões de dólares. Foi construído há apenas três anos. É sem dúvida uma boa estratégia da empresa norte-americana, pois graças ao aumento do consumo dessa commoditie no mundo mais soja será produzida e exportada pelo Brasil. Estar em Santarém significa uma boa economia de transporte para chegar a Europa ou China que são os dois maiores compradores.

Logisticamente funciona assim: A soja é plantada no Centro-Oeste, principalmente no estado do Mato Grosso, mas não necessariamente no bioma amazônico como adoram afirmar os mais radicais. Depois de colhida ela é transportada de caminhão até Porto Velho, capital da Rondônia. A principal rota é a BR-364. Em grandes barcaças puxadas por balsas os grãos descem o rio Madeira, sentido rio Amazonas. Daí há uma bifurcação: uma parte vai para o porto de Itacoatira, no estado do Amazonas, onde é transferida para os cargueiros transoceânicos que a leva para o exterior. A outra parte entra no rio Amazonas até chegar a Santarém, onde também é transferida para os cargueiros.

O porto de Itacoatira pertence ao grupo Maggi, do governador mato-grossense, e o de Santarém à Cargill.

Para entender um pouco o lado político da questão, consegui agendar uma entrevista com a atual prefeita de Santarém, Maria do Carmo. Ela nos recebeu em seu apartamento, pois não podia ir à prefeitura por causa de um protesto de moto-taxistas indignados com alguma lei que proibia sua atividade.

Simpática e bem-falante ela nos contou a história de Santarém, desde o tempo dos portugueses, e delongou-se bastante sobre as potencialidades do município. Como boa política quase não falou sobre soja. Culpou o governo militar pelos projetos de integração nacional, mas defendeu a pavimentação da BR-163:

-Desde que haja um plano integrado para que Santarém possa acolher o desenvolvimento e aumento populacional esperado.

Confesso que já estava um pouco cansado da entrevista da prefeita quando ela mencionou que seu grande sonho para os próximos 25 anos é a criação do estado Tapajós. Para mim uma grande novidade, mas aparentemente a idéia existe desde 1876 quando se propôs a criação da Província do Tapajós no Oeste do Pará. Esse novo estado seria a fatia da esquerda se dividir o estado do Pará ao meio, como pretendem seus defensores. Das montanhas do Tumucumaque até a Serra do Cachimbo. Santarém é claro seria a capital.

Se o novo estado vai ou não vai sair do papel fica para outro momento. Voltemos à soja.

A grande briga do Greenpeace é evitar que florestas sejam derrubadas para o plantio de soja. Como é muito difícil brecar a produção em lugares já consolidados, como no norte do Mato Grosso, esses ativistas elegeram os pequenos produtores de Santarém como alvo.

A causa é legítima “evitar mais desmatamento”, mas a briga é injusta. Nos arredores de Santarém não há sequer uma fazenda com mais de mil hectares plantados de soja. Só como comparação no norte de Mato Grosso há inúmeras com mais de 30 mil hectares. Talvez não haja mais de cinco produtores com mais de 500 hectares de terra. A maioria é pequena ou média propriedade.

De todo volume de grãos já exportados pela Cargill via o porto de Santarém desde o início de suas atividades menos de 3% foi produzido na região.

Em nossa última visita a futura capital do estado do Tapajós, quando filmávamos uma plantação de soja que estava a um mês do plantio, fomos abordados por dois produtores que pararam suas caminhonetes próximos de onde estávamos. A primeira frase que ouvi de um deles, um típico polaco imigrante do Paraná ou Rio Grande do Sul foi:

- Se fosse a minha propriedade vocês já tinham levado chumbo!

Esse é o clima em Santarém. Um local onde a produtividade é muito maior, a mão de obra é barata, sol e chuva o ano todo o que pode possibilitar até duas colheitas por ano e bem perto do mercado consumidor. Como já escreveu os cientistas do INPA, Clement e Val: “é um sucesso sob todas as óticas, menos uma: a taxa e a quantia absoluta de desmatamento”. Corresse o risco de retirar toda a área florestal com essa franca expansão da fronteira agrícola.

É um típico caso de mercado versus meio ambiente que persiste e persistirá na Amazônia ainda por muitas décadas. Conciliar, nesse caso, não é fácil, mas é possível. Santarém ainda vai dar muito que falar.

16 / O Dono do lago.


A foz do rio Xixuaú fica a quatro horas subindo o rio Jauaperi a partir do rio Negro. A viagem começa no Amazonas e termina no sul de Roraima. Nesse trecho, tudo o que está à direita de quem sobe o rio é parte da Reserva Indígena Waimiri-Atroari.

Esse grupo vive numa aérea de mais de 2,5 milhões de hectares. Dentro dela passa a rodovia BR-174, que liga Manaus a Boa Vista e depois à Venezuela. Após a construção da hidrelétrica de Balbina, até hoje contestada graças à pífia geração elétrica comparada ao tamanho da área alagada, a Eletronerte destinou recursos para compensar os estragos causados. Foi então iniciado uma efetiva ação, conhecida como Programa Waimiri Atroari, que desde 1988 tem atividades múltiplas nas áreas de administração, saúde, educação, meio ambiente, apoio à produção, documentação e memória. Lê-se no site do programa (http://www.waimiriatroari.org.br):

- O objetivo pretendido foi o de que os Waimiri Atroari pudessem preservar dinamicamente sua autonomia cultural, a partir de uma inserção social em bases equilibradas, no contexto da sociedade nacional...

A base para nossas operações de mergulho na Amazônia foi a Reserva de Xixuaú, que pertence a uma associação de comunitários, entre eles um escocês chamado por lá de Cris. Ele coordena as atividades ligadas a turismo na reserva, que é muito procurada para a gravação de documentários por causa das águas transparentes e da abundante biodiversidade. Eles estão envolvidos na criação da futura Reserva Extrativista do baixo rio Branco que incluiria essa e outras áreas ao redor.

Reserva Extrativista - de domínio mínimo, é uma área utilizada por populações tradicionais, cuja sobrevivência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte. Tem como objetivos básicos proteger os meios da vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade.

Numa grande maloca está a maioria dos quartos e também uma grande cozinha e “sala-de-estar” que dispõe de uma boa biblioteca de férias com vários volumes sobre a Amazônia. A maioria dos livros, no entanto, é em inglês, alemão e italiano. Principais nacionalidades dos que se “aventuram” por ali.

Ver finalmente todo o nosso material de mergulho e operações aquáticas em uso era bastante motivador. Fiz vários mergulhos de máscara, pé-de-pato e snorkel. Uma roupa de borracha somente para ficar mais tempo em baixo dágua.

A variedade de peixes e bichos é incrível: tucunarés, pintados, piranhas, peixes de rabo vermelho, arraias, tartarugas. Era possível avistar tudo isso sem grandes esforços. Claro que quanto mais tempo na água maior a recompensa.

A água é bem transparente. Mergulhar em uma floresta inundada é uma experiência quase mística. As formas, os ângulos, as sombras e os contrastes formam visuais difíceis de descrever.

Bem diferentes do mar é verdade.

Fomos avisados que a seis horas de voadeira da nossa base existiam cinco grandes lagos e que a possibilidade de avistar peixes-boi, ou manatis, era grande. Rapidamente montamos uma equipe formada por nosso câmera, uma fotógrafa, uma mergulhadora, quatro guias, uma cozinheira e eu. Partimos no dia seguinte cedo em dois botes de borracha com motor de 30hp, uma rabetinha e três canoas de madeira.

Entre os guias o mais velho e experiente era o “seu Carlito”, profundo conhecedor dessa região. Era assustador seu poder de percepção e sensibilidade em relação aos fenômenos naturais. Mais de uma vez ouvi dizerem que ele tem uma metade bicho.

Até onde montamos nosso acampamento, a poucos minutos de um dos lagos, foram seis horas de viagem. Parte delas subindo novamente o Jauaperi e a outra subindo um afluente chamado Xiparina. O acampamento ficou confortável, duas barracas, uma grande lona que cobria os alimentos e o fogão. Os locais dormiram todos em suas redes amarradas às arvores em volta. A comida sempre a mesma: arroz, feijão, farinha e peixe-frito. Muito bom por sinal.

Durante cinco dias a mesma “rotina”: mergulhar e pescar para comer. A abundância de peixes era tão grande que bastava alguns arremessos com linhada e isca artificial para garantir a próxima refeição. Quem gosta de pescar sabe a emoção de fisgar um tucunaré.

Durante um de nossos mergulhos resolvi explorar o lado oposto do lago onde a equipe realiza as filmagens. Quando investigava dois troncos de árvore submersos, notei que ao lado havia uma forma que em nada parecia uma planta. Era muito grosso no meio e ia se afunilando na direção do barranco. Tomei fôlego e desci uns dois metros. Qual não foi meu espanto quando quase trombei num jacaré-açu de uns 6 metros de comprimento.

Como se fosse o dono do lago, o bicho estava lá no fundo, quieto, como se nem notasse minha presença. Meu coração disparou, uma mistura de medo e adrenalina tomaram conta do meu corpo e por alguns instantes paralisei. Pensei em nadar para longe, mas tive medo de que ele me perseguisse. Me senti como uma presa. Aos poucos fui batendo a perna e saindo de onde estava. Quando me senti seguro comecei a gritar, a berrar.

Matt, o cameraman, se esquentava no sol da manhã depois de horas de mergulhos ininterruptos. Foi difícil convence-lo a voltar para a água, mas um bicho daquele tamanho sem dúvida valeria a pena. Identifiquei o local do jacaré por uma árvore no barranco próximo. Ele que já mergulhou com tubarões branco e há anos mergulha mundo à fora com os Cousteaus quase não acreditou no que viu. Ficou tão chocado que na primeira tentativa sequer conseguiu apontar a câmera. Voltou para a superfície e com os olhos arregalados soltou um genuíno “Oh my God!”. Na segunda vez captou algumas imagens, mas que por falta de escala não dão conta do tamanho daquele réptil. Para mim foi uma experiência traumatizante e naquele dia não consegui voltar pra debaixo dágua.

17 / Alta Floresta e o arco do desmatamento.


Apesar da chuva que caía nos últimos dias, a estrada que liga a fazenda Bacaeri ao município de Alta Floresta estava em boas condições. Não é asfaltada, mas é uma boa estrada de fazenda. Alta Floresta é um dos últimos municípios do norte do Mato Grosso, já está bem perto da divisa com o Pará. Por aqui passa o chamado “arco do desmatamento”, que nada mais é que o caminho por onde avança a nova fronteira agrícola no Brasil. Entrando cada vez mais em território amazônico, ocupando áreas de floresta e deixando para trás outras tantas abandonadas.

Quem me leva até lá é Antônio Passos, o proprietário da Bacaeri. De óculos, bem humorado e beirando os 50 anos, seus olhos brilham quando conta a respeito da sua plantação de Teca.

- A Teca é uma árvore que em 25 anos após ter sido plantada produz uma madeira de excelente qualidade estética e industrial.


Em sua propriedade de 20 mil hectares a plantação de Teca ocupa aproximadamente 5% da área. Segundo ele, graças ao clima tropical da região amazônica é possível colher a madeira na metade do tempo de países concorrentes como a Indonésia, onde o ciclo pode durar meio século. Isso em economia chama-se de vantagem comparativa.

Outros 40% são usados para uma pecuária de corte extensiva e o resto é de floresta impedidos de vir abaixo pelo código florestal. Isso porque Antônio “abriu” sua fazenda antes de 2001, quando uma medida provisória do governo Fernando Henrique passou a permitir somente 20% de desmate. Na prática são poucos os que respeitam o código florestal, Antônio é exceção, mas deixamos essa discussão para um outro momento.

Vendo aqueles bois pastando me fez lembrar da minha infância na fazenda. Sabendo da crise por que passa a pecuária nos últimos anos, principalmente pelo baixo preço da arroba que é o mesmo de quatro ou cinco anos atrás, perguntei ao Antônio se essa atividade dava dinheiro. Ele me respondeu calmamente:

- Eu encaro a pecuária como se o dono dos bois, que sou eu, e o dono da terra, que sou eu também, fossem duas pessoas diferentes. O dono dos bois paga um aluguel pela terra para engordar seu rebanho e no fim do ciclo até consegue ter algum retorno. Nada muito além do rendimento da poupança. Já o dono da terra dá até vergonha. A renda é pra lá de negativa. Se pegar o valor investido, ou seja, quanto custou à fazenda sem nada em cima, e comparar com os rendimentos futuros da pecuária, jamais vou recuperar o investimento. No entanto, há sempre a especulação imobiliária. Voluntária ou involuntária. Em poucos anos o valor da mesma terra pode dobrar ou mesmo quintuplicar.

Resumindo: o sujeito compra uma área, desmata e enche de bois. Não ganha nada com essa atividade, mas garante a posse da terra. Depois de alguns anos ele vende a propriedade pelo triplo do preço que pagou e com o bolso cheio de dinheiro vai comprar uma outra área muito maior, geralmente mais pro norte. Profissionais nesse lucrativo e desregulado mercado enriquecem. O ciclo continua, Amazônia adentro.

Antônio não se considera um desses profissionais, ao menos não voluntariamente, mas seu caso é bem ilustrativo das pessoas que migraram para essa região em busca de melhores oportunidades. Uma das diferenças é que ele é um dos poucos bem sucedidos. Com vinte e poucos anos veio do Paraná com um tio seu e se instalaram na cidade de Cláudia, também no norte do Mato Grosso, onde iniciaram uma madeireira. O negócio deu muito certo o que permitiu que comprassem essa área de 20 mil hectares em Alta Floresta. Com à pressão de órgãos como o Ibama e toda a pressão sobre a atividade madeireira ele abandonou a indústria e hoje ocupa-se somente com a fazenda.

Alta Floresta, como muitas outras cidades no arco do desmatamento, foi colonizada com o esforço do governo militar. O lema era “Integrar para não entregar”, dizem que era o receio de que estrangeiros tomassem a nossa floresta amazônica, mas era mesmo um projeto de integração em larga escala. Só possível pra um governo central e autoritário.

O colonizador aqui foi um “formador de cidades” chamado Ariosto da Riva. Ele recebia glebas do governo federal e ficava responsável por dividi-la e atrair produtores. A cidade de Naviraí no Mato Grosso do Sul, perto da fronteira com o Paraguai, também foi iniciada por ele.

Outro rapaz muito interessante que conheci chama-se Jânio e é dono de uma pequena empresa de táxi aéreo em Alta Floresta. Alugamos um de seus dois Cesnna 206 para fazer alguns sobrevôos ali em volta e também na região do município de Sorriso, que é a área mais ao norte do Mato Grosso onde já se planta soja. Em Alta Floresta não há soja e dificilmente terá por causa do terreno mais acidentado e coberto de rochas.

Enquanto tirávamos à porta do pequeno avião tivemos nossa primeira conversa. Antes todo o nosso diálogo se resumiu a negociar o valor das horas de vôo. Ele me disse que começou a voar na época do garimpo, décadas de 60 e 70. Antes das primeiras fazendas serem abertas.

Graças a sua profissão de piloto, Jânio tem uma visão privilegiada das mudanças ocorridas nos últimos 40 anos. Ele viu tudo de cima.

- Foi o próprio governo que abriu as portas disso aqui, incentivando os imigrantes. Agora começa a fazer repressões. Gastam milhões em operações aéreas e repressões. Mas é tudo maquiagem. Em ano político a fiscalização afrouxa e fica com tanta fumaça das queimadas que tem dias que nem dá para voar. E ainda não tem nada previsto e nem programado para essa região, ou seja, ainda não tem solução nem pro longo prazo.

Esses dias em Alta Floresta e nossas horas de vôo na região me ensinaram que repressão desvinculada de política pública e planejamento é um gasto de tempo e dinheiro. Se o problema é econômico, a solução também deve ser. O resto é maquiagem.