11 / Rodovia das Contradições.


A BR-163 é a estrada que liga Cuiabá, capital do Mato Grosso, a Santarém, segunda maior cidade do estado Pará e cotada como futura capital do ainda inexistente estado do Tapajós. Não é a toa que o apelido da estrada é Cuiabá-Santarém. Santarém está na margem direita do rio Tapajós, estrategicamente localizada em sua confluência com o rio Amazonas. No total, a estrada tem aproximadamente 1800 km.

Percorri duas vezes o trecho de 354 km entre Santarém-Itaituba. Aqui, como em todo território Paraense, a estrada ainda não está asfaltada. Como era época da seca, mês de outubro, a estrada estava transitável. É verdade, porém, que em alguns trechos chegava a ter dó do carro que dirigia: uma Toyota Hilux (alugada em Santarém).

A estrada foi aberta em 1972 dentro dos programas federais de integração nacional, os mesmos que trouxeram os imigrantes que hoje habitam essa região. O lado Mato-Grossense com 772 km está asfaltado em toda sua extensão.

Até o município de Belterra (beaultiful land) o asfalto ilude o viajante inexperiente. No trevo da cidade tem uma antiga máquina de esteira. O “monumento”, bastante castigado, é símbolo de uma das épocas de otimismo da região. Foi quando Henry Ford decidiu implementar um cultivo racional de seringueiras para abastecer o volumoso mercado de borracha natural.

Nesse dia, 15 de outubro, dia da República, era até divertido dirigir por Belterra. As casinhas construídas na época de Ford ainda estão bem conservadas e em funcionamento. Nem parece que estamos no Brasil. É claro que mudaram de função. Uma delas, na antiga Vila dos Americanos, serve como sede da EMBRAPA. Há muitas pesquisas sobre o solo, água e fauna dessa região, que são riquíssimos.

Como era feriado aqui no Brasil, achei conveniente pegar uma praia.

O rio Tapajós com suas limpas e puras águas azuis forma praias quilométricas durante os meses de seca. Apesar do município vizinho de Alter do Chão levar a fama, Belterra guarda praias de indescritível beleza e água doce.

Depois de apenas uma Cerpa gelada, cerveja tipicamente Paraense, quase me convenci de que seria melhor dormir por ali e seguir caminho só no dia seguinte. “Mas trabalho é trabalho até no feriado”, pensei para me convencer a voltar à caminhonete. Já passava do meio-dia e acreditava que chegaria a Itaituba ainda naquele dia.


Entre Belterra e Rurópolis talvez esteja o pior trecho da rodovia. Crateras enormes aparecem a cada cem metros, mas como não chovia há meses, devagar se passava bem. Durante esses 180 km de sofrimento ao volante, a paisagem à direita é deslumbrante. Uma enorme floresta se ergue majestosa, é a Floresta Nacional do Tapajós, ou, FLONA Tapajós.

Criada em 1974, essa unidade de conservação tem 545 mil hectares. Inúmeras placas ao longo da estrada mostram que a FLONA Tapajós é utilizada como base para pesquisas do LBA ( Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia).

Floresta Nacional (FLONA):
área com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas e que tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos para exploração sustentável, sendo permitida a permanência de população tradicional existente quando da sua criação.


Não resisti ao ver uma porteira aberta e entrei alguns quilômetros FLONA adentro. Não é em todo lugar que se tem uma estradinha em meio a uma floresta exuberante. Com o carro desligado tive a sensação de estar num corredor de floresta. Árvores gigantescas em cada lado da estrada e muitos pássaros e pios. Um casal de araras quebrou minha contemplação e resolvi voltar para a estrada antes que alguém me visse lá dentro.

Por volta do km 110 parei antes de uma ponte para conferir o mapa e a caminhonete pifou. Virava a chave e sequer uma luzinha no painel acendia. Comecei a me imaginar no lugar dos caminhoneiros que não tem outra opção a não ser viajar por estrada solitária e contraditória.

Por um lado o asfaltamento permitirá um maior acesso a essa rica região e diminuirá custos com transporte das mercadorias industrializadas que vem de Manaus para o Sudeste do país. Em relação aos benefícios para a produção agrícola do Centro-Oeste, o seguinte trecho extraído do documentário Amazônia Revelada é contundente:

- A soja do norte do Mato Grosso roda alguns milhares de quilômetros para o Sul e é embarcada nos enfartados portos de Santos ou Paranaguá, para depois navegar outros tantos mil quilômetros para o Norte e finalmente chegar à mesma latitude. Há décadas esse produtor a dois passos do rio Amazonas sonha com a possibilidade de atender pelas portas da frente, muito mais próxima dos consumidores europeus e asiáticos.

Menos evidentes, ao menos no curto prazo, são os custos ambientais. Num estudo intitulado “A pavimentação da BR-163 e os desafios a sustentabilidade”, pesquisadores de várias organizações calculam os custos ambientais do asfaltamento na ordem de 1,5 bilhões de dólares num cenário sem governança, ou seja, sem ações efetivas do governo federal. Esse mesmo estudo cita ainda que no lado mato-grossense que já está asfaltado, 54% das áreas florestais a cinqüenta quilômetros da estrada foram desmatados. No Pará esse número é de apenas 3%, mas crescendo exponencialmente.

Tive mesmo que abandonar a idéia de chegar a Itaituba e aceitar o fato de dormir na caminhonete na beira da estrada. Poucos veículos passaram por mim naquela noite. Na manhã seguinte encontrei um boteco-beira-de-estrada e um sujeito resolveu “olhar minha situação”. Na primeira tentativa o carro funcionou misteriosamente, envergonhado segui caminho. Pouco depois encontrei um eletricista que apertou os cabos da bateria. Devido às trepidações eles estavam mal conectados o que explica a falta de partida do dia anterior.

Em Rurópolis, cidade de entroncamento entre a Rodovia Transamazônica e a BR-163, há uma placa em frente ao hotel Médice que data de 1974 e retrata o espírito da época em que essas estradas eram abertas:

- A Amazônia de hoje é o inacreditável lugar onde aparecem de mãos dadas a fantasia e o real; o épico e o impossível, a epopéia e a lenda.

Inacreditavelmente e em pleno séc.XXI a frase ainda faz sentido. Basta lembrar que para a maioria de nós brasileiros a imagem da Amazônia não é diferente das descrições que os portugueses faziam do Brasil na época do descobrimento.

Para chegar a Itaituba é ainda preciso cruzar de balsa o rio Tapajós. A cidade que já viveu seu apogeu na década de 80 por conta do ouro, hoje tem na pecuária sua fonte de sustento. Mas me pareceu decadente. Nos portos a única mercadoria que vi aguardando para ser transportada era madeira. Legal ou não, não pude descobrir. É bem possível que esse cenário se altere quando a BR-163 for mesmo asfaltada.